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O que eu ganhei na estrada

Renan é um jovem publicitário que um dia criou uma conexão tão forte com a arte popular que resolveu largar uma carreira bem sucedida para se dedicar exclusivamente à sua paixão e descobrir quem eram os autores por trás dos objetos que o fascinavam. Para isso caiu na estrada percorrendo os quatro cantos do país, em busca da essência da nossa identidade cultural materializada em obras de arte tão expressivas quanto os lugares onde são criadas.

Renan Quevedo


Se a gente ainda não se conhece, muito prazer. Meu nome é Renan Quevedo e sou pesquisador de arte popular brasileira. Nos últimos 7 meses, dirigi mais de 27 mil quilômetros pelas estradas do país em busca de artistas populares brasileiros, uma jornada que acabou dando a luz ao Novos Para Nós, meu projeto de divulgação e valorização da arte popular brasileira. Durante esse tempo na estrada, fiz um único compromisso comigo mesmo: contar, pelo menos uma vez por dia, a história de algum artesão. Fui confrontado pelo cansaço, ansiedade, vivências, empolgação, alegrias, realidades, tristezas. A seguir, abro meu diário para compartilhar algumas delas. Minha história tem um começo comum a algumas outras histórias que você já ouviu: um publicitário que trabalhava em uma grande agência de São Paulo até que em um (não tão) belo dia a cabeça deu um nó e percebeu que o dia a dia não preenchia da forma como deveria. Esse conflito teve início no meu primeiro grande contato com a arte popular: em 2012, fui à exposição Teimosia da Imaginação, no Instituto Tomie Ohtake, onde as obras de 10 artistas populares estavam em exibição.

Em seguida, comecei a pesquisá-los e fazer minhas primeiras viagens a campo para entender melhor esse universo. Tempos depois, quando me dei conta, estava cruzando o país nos finais de semanas, feriados e qualquer outro tempo livre com o um hobby que virou quase uma deliciosa obsessão: visitar e conhecer os artistas e artesãos do interior do País, ultrapassando fronteiras que nunca tinha imaginado para chegar a roças, vilas e assentamentos isolados com pouca ou nenhuma estrutura.Me vi sem outra saída senão largar o emprego, alugar um carro e passar um bom tempo na estrada dando vida a um sonho. Abandonei meu trabalho como diretor de arte, porque entendi que tinha descoberto o que considero a minha maior vontade em outros campos da arte, menos digital e mais real. Foi assim que nasceu o “Novos Para Nós” e uma vida sem arrependimentos.

Até o momento, passei por 16 estados (de todas as macrorregiões brasileiras) mais o Distrito Federal durante 7 meses de muitas aventuras, somando quase 300 artistas visitados e o mesmo número de histórias contadas nas redes sociais. Isso sem falar nas benzedeiras, curandeiros, músicos, contadores de causos e tantos outros personagens de um Brasil tão repleto de essência: uma experiência maravilhosa que vou levar para o resto da vida: linda e dolorosa ao mesmo tempo.

“O deslocamento geográfico, por mais que intenso e grandioso, não chegou aos pés do deslocamento de eixo que vivi. Só quem já se aventurou pelas regiões do Brasil, sujou os pés em diversos sertões e bebeu, literalmente, da mesma água que os artistas populares bebem sabe o que estou falando”.

Colecionando Brasis

Entre as tantas histórias e momentos mais especiais, me recordo do Dudu da Costa (Daniel Rodrigues da Costa), de apenas 19 anos, é morador da zona rural de Cabaceiras (PB) que promete ser uma das próximas revelações entre artistas populares do país. Ele me contou que desde pequeno tem os ouvidos afiados para a música, entretanto, não tinha condições financeiras para estudar. Por isso, ia de carona para a cidade onde conseguia sinal de internet grátis para carregar vídeos no YouTube e, logo em seguida, retornava para casa onde, sozinho, tentava reproduzir os sons das canções. Já que não tinha instrumentos, resolveu inventar cada um reaproveitando materiais que encontrava pelas redondezas.

Foi assim que surgiu o chocalho de crânio de cachorro com unhas de bode e sementes, o reco-reco da queixada do cavalo, apitos de barro e assim por diante.E a sinfonia já repercute pelo sertão. Junto a mais dois colegas, Dudu se apresenta em festejos de Cabaceiras (PB) e região transformando sonho em arte. “Eu queria muito. Fui lá e dei um jeito”.

Minha coleção de Dudus e outros brasileiros que dão aula de resistência, persistência e realização não para de crescer. Perambulando pelo centro-norte de Sergipe, encontrei simpáticas bordadeiras sentadas nas varandas de suas casas e quero te contar mais sobre uma delas. Acredito que a maioria nunca escolheu aprender a bordar: o fazem porque desde pequenas observam suas mães, irmãs e vizinhas cruzarem o pano desenhando e criando formas. “Todo mundo aqui sabe”, responde dona Maria José, de Gracho Cardoso, próxima dos 70 anos, assim que bato palmas em sua casa e pergunto se ali mora uma bordadeira. “E, se alguém aqui diz que não sabe bordar, é porque está mentindo”, completa. Me convida para entrar e sentar em sofá, revestido com uma capa de rendendê que eu demoraria a eternidade para finalizar. Pela quantidade de detalhes, suspeito que ela deve ter demorado só um pouco menos. Descobrir as nuances desse Brasil feito à mão tem me mostrado que luxo mesmo é ter a habilidade de fazer o ninho onde nos sentimos mais acolhidos – por um minuto, imagine as inúmeras possibilidades narrativas dessa imagem!

“Tenho parentes em São Paulo, mas eu gosto é daqui. Meu filho, minha vida foi só desgraça. Se você acha que eu aprendi com a minha mãe, está errado. Ela morreu quando eu tinha 7 anos. Eu nem tive essa chance. Aprendi foi com a minha vizinha. Pensa se tem alegria maior no mundo do que sentar aqui na garagem, conversar com as amigas enquanto bordo. É o melhor remédio para os meus dias. E qual é o médico que receita isso?”. Ela levanta e sugere me levar para conhecer outras bordadeiras da rua. Quando voltamos, pede pra que eu espere do lado de fora antes de nos despedirmos e corre para dentro de sua casa. Volta com uma sacolinha e diz: “Tome, é aquela almofada do sofá que gostou. Eu não tenho como vendê-la para o senhor, mas leve porque gostei muito de você”. Saí de lá com água nos olhos.

Já no Norte, lindos achados da beira da estrada: Lucrécia Bento Filho e suas cerâmicas tocantinenses! Era pôr do sol, entre uma curva e outra da rodovia próxima à Arraias (TO), e me deparo com a sua vitrine de utilitários feitos de barro. “Eu nem sei dizer há quanto tempo coloco as coisas aqui fora, também não sei dizer quando comecei. Acho que não tinha nem 6 anos de idade, era novinha”. O papo desenrola e Dona Lucrécia me conta que precisou encontrar o sustento em algum lugar para driblar os problemas que a vida impôs. “Não tenho muito e a minha casa é muito simples, mas consegui criar meus filhos e ainda dei jeito de ser feliz”.

De uma forma geral, há uma força cega que me dá a certeza de que estou lidando com um dos maiores tesouros que temos no nosso País. A minha inquietação é que essa riqueza movimenta um mercado nem sempre justo. Entre alegrias, surpresas e descobertas na estrada, esbarrei também pessoas interessadas em extrair lucros excessivos dos artistas populares e seu pouco conhecimento de mercado. Isso não acontece apenas nas comunidades tradicionais, mas inclusive em grandes eventos teoricamente criados para valorizar a cultura popular e o trabalho dos artistas brasileiros. Por isso, se eu pudesse transformar meu trabalho em um apelo, seria para que os consumidores e profissionais do setor pagassem o valor que o artista pede e ajudassem os próprios artistas a precificarem suas peças. Se for um lojista, depois inclua seus custos e lucros. Ninguém está fazendo favor de “divulgar a arte popular” se explora os artistas.

Dormi na casa de muitos deles, saí para buscar matéria-prima, almocei e jantei em suas casas. E inúmeras vezes. Sei das dificuldades que eles passam, da pouca instrução financeira e comercial, dos sonhos, contentamentos. E todos nós sabemos (!) da imensurável importância do seu trabalho para nossa cultura popular e não é pedir muito agir com honestidade para com eles.

Além dessas inquietações, o que eu ganhei estando longe da estrada foi só saudade. E é claro, a vontade de sempre voltar para ela.

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