O que o interior da sua casa diz sobre o seu interior?
A nossa relação com a casa reflete nossas memórias, nossas crenças e visões de mundo. Cada objeto que trazemos de uma viagem para morar conosco, a forma como transformamos a decoração a cada dia e, mesmo, como geramos e separamos nossos resíduos nos ajuda a materializar nossos desejos mais íntimos para o mundo
Thais Marquez
20 de setembro de 2024
Passei um ano em Moçambique, num projeto de artesanato, treinando comunidades de artesãs e artesãos. Quando voltei para São Paulo, uma nova história e forma de viver e ver o mundo estavam por habitar a próxima morada. A saudade da cor do mar de Pemba, me inspirou a pintar uma raia na parede da sala no mesmo pantone do oceano Índico. já o encanto pelas estampas das capulanas revestiram as mesas e almofadas do ambiente. Os colares de animais africanos esculpidos em ébano pendurei na parede e, assim, cada viagem a trabalho que eu fazia acabava voltando com peças que havia desenvolvido ou encontrado nas comunidades visitadas.
Essas peças passaram a transitar pela minha casa formando composições diversas ou recebendo outras funções, como uma bandeja que vira quadro, uma gaveta ou luminária que vira mesa ou a bolsa que foi pendurada na parede compondo com outros adornos artesanais. Até os ambientes entraram nessa lógica com novas funções. Atualmente a tábua de passar está sendo usada no corredor que transformei em ateliê de prototipagem e a cama de casal do quarto de hóspedes já está me pedindo pra morar na sala por um tempo.
Cada vez mais, trato a decoração da minha casa como um laboratório, uma transformação constante. Assim como eu mudo, minha casa muda comigo e nos últimos anos ela vem sendo, além de mutante, uma casa itinerante.
A cada mudança, me reciclo e ressignifico meus valores. Deixei pra trás coisas que não me representam mais, e questiono se preciso de novo ocupar o espaço que foi liberado. Comecei, então, a exercitar o olhar para o que me cerca e elenquei algumas premissas que exercito diariamente como um mantra. Aprender a consumir de forma mais consciente, gerar menos lixo no mundo, eliminar os excessos. Hoje percebo que é esse o maior legado que gostaria de deixar para minha filha e para as novas gerações.
O local é mais legal
Ao optarmos por um produto artesanal produzido no entorno ao invés de um produto industrializado chinês, comprado por impulso porque estava super barato, estamos contribuindo com a economia criativa. E, assim, levamos mais significado nas coisas que escolhemos para conviver conosco. Os franceses, por exemplo, priorizam o consumo de produtos fabricados no próprio país, incentivando a geração de renda local. No Brasil, o comércio online e a entrada de grandes varejistas chinesas têm impulsionado a comercialização de produtos descartáveis que não apenas geram uma quantidade enorme de lixo, mas também fortalecem a exploração do trabalho ao redor do mundo. Para fazer frente a essa tendência, podemos ter no radar a proposta de comprar das comunidades locais, valorizar projetos com valores socioambientais (orgânicos e artesanais), consumir marcas engajadas em causas e frequentar a feirinha de bairro.
Além da valorização do local, a compra consciente nos ajuda a gerar menos lixo. Hoje, olho com uma lente de aumento para cada produto e embalagem a minha volta: é reciclável? Reutilizável? Biodegradável? Quanto lixo eu produzo por dia? O meu lixo é mais orgânico ou inorgânico? Esses são drives importantes para uma vida mais saudável para nós e para o planeta. É incrível a quantidade de recipientes plásticos, em formatos diversos, que somos estimulados a trazer para a casa. Por isso é importante refletir diariamente sobre a quantidade de produtos que compramos, que fazem parte da nossa rotina e que, sem reflexão ou pudor de descarte, jogamos no lixo sem pensar na sua sobrevida. O lixo que você gera é termômetro do seu estilo de vida.
A moda é circular
Em um mundo que enfrenta as crises ambientais que testemunhamos é preciso reconhecer com urgência. Os recursos do planeta são finitos e não cabe mais consumismo de modas passageiras. É hora de trocar produtos descartáveis de curta duração por produtos de longa vida, reparáveis, reutilizáveis, customizáveis, incentivando o modelo de fabricação responsável. Estar na moda é sair do modelo linear de consumo e apostar na economia circular. Se você tem um produto que está na fila para virar lixo e tem potencial de reaproveitamento, traga ele antes para a “mesa da reflexão” veja se ele pode ter uma segunda vida antes do seu descarte final. A ordem é reduzir as pegadas de carbono e optar pela reutilização em vez de seguir o modelo do fast fashion.
Tempo para estar e ressignificar
Minha sala é de estar mas não é estática. Observo, reflito, reconheço lugares, pessoas e objetos no ambiente. Ainda hoje, olho para minha estante e me lembro de uma das primeiras viagens que fiz para a Bahia a trabalho. Naquela época, visitei um grupo de ceramistas tradicionais de Maragogipinho e comprei uma pequena cabeça que já transitou por vários endereços. Hoje, essa peça voltou e mora em Salvador comigo. Não sei ao certo qual será a próxima parada, assim como eu não sabia que aquela cabeça de cerâmica me traria pra Bahia, mas sei que hoje estou soteropolitana e carrego uma bagagem repaginada, com novos propósitos e pronta para ser recheada de aprendizados e novas experiências nesse mundo conectado que nos teletransporta e não nos endereça mais. Hoje já é amanhã.
Thais Marquez
Thaís Marquez é designer, viajante e apaixonada pelas conexões entre artesanato, design, comportamento e sustentabilidade. Atuou em cargos de criação e inovação em empresas como Tok & Stok, Grupo Adeo e Le biscuit durante mais de 15 anos. Sua trajetória sempre envolveu projetos sociais dentro e fora do país. A Casa Itinerante, nasceu dessa soma de experiências e há dois anos realiza consultorias, mentorias e cursos com projetos que envolvem empreendedorismo, economia criativa e circular.