O que os mestres têm a nos ensinar?
Muito além da sua capacidade de interferir criativamente na realidade ao seu redor, criando um legado de inegável valor material e imaterial, os mestres artesãos nos trazem a possibilidade de rever nossa perspectiva sobre o mundo em tempos de busca e reconexão.
Vanessa Gomes
O mestre de ofício, o mestre artesão, os mestres da arte popular e doartesanato são pessoas que se expressam através de diversas linguagens artísticas, ritos e festas comunitárias, dedicando sua vida e obra à produção e manutenção das práticas e saberes relativos à arte popular e ao artesanato tradicional. São reconhecidos por seus pares e por especialistas, não só pela sofisticação do seu trabalho, mas pela capacidade de transmissão de seus conhecimentos artísticos e culturais para toda uma comunidade. São, portanto, mediadores entre passado e presente, guardiões de memórias marcadas pela herança de antigas matrizes culturais e pela criação de novas técnicas. O mestre também se destaca pelo alto nível de conhecimento em seu ofício e por sua destreza técnica.
Muitos deles possuem aprendizes ou inspiram uma nova geração de artesãos locais mesmo não transmitindo diretamente a eles seus ensinamentos. Promovem, assim, a permanência de uma cultura no passado, no presente e no futuro, simultaneamente.
Muito além dessas definições conceituais, porém, nossos mestres da arte popular ostentam algo muito mais valioso a nos oferecer. Seu legado, com frequência reconhecido como patrimônio de valor material e imaterial, transcende as fronteiras do conhecimento artístico, técnico ou mesmo intelectual. Representam verdadeiramente, uma espécie de portal de acesso a uma sabedoria ancestral, que resguarda outra natureza de valor e alcança dimensões de conhecimento e saberes sutis, aos quais o mundo vem clamando.
Escassez e Abundância
A produção artesanal no Brasil tem origem em um cenário de subsistência onde os objetos são criados com o papel de cumprir funções definidas e essenciais no cotidiano das populações nativas. É na escassez, por necessidade – de estocar, armazenar, transportar e outras demandas do dia a dia – que essa arte surge, apesar ou mesmo por causa de circunstâncias sociais e financeiras desfavoráveis. Quando se depara com a chance de abandonar essa narrativa de pobreza, algumas vezes, o artesão se desprende dessa conexão com sua própria origem. Deixa sua herança ancestral e saberes intuitivos pra trás e parte em direção ao “progresso”. Encosta atrás da porta o antigo cesto de palha feito à mão em troca do utensílio de plástico enquanto busca – de forma compreensível – sua estabilidade financeira e da sua família, que não alcançou com a produção artesanal.
Para o artista popular, no entanto, mais do que seu meio de sobrevivência, a arte é sua plataforma primária e absoluta de expressão e liberdade. Suas criações nascem a partir de um impulso, uma profunda inquietação e necessidade de expressão – inata do ser humano – de dar vida a seus saberes legítimos ancestrais como instrumento de liberdade.
Diferente da escassez, esse é o terreno da abundância. Abundância de criatividade, de entrega, presença, beleza e fé. Abundância em suas múltiplas dimensões, existente em toda a criação e que impregna no objeto que vai ganhando forma, se expandindo e se dissemina através do legado que os mestres nos deixam junto com sua obra. Por isso, é tão importante valorizar seu conhecimento e produção, inclusive financeiramente, seja através de políticas públicas, seja através de práticas justas de comercialização.
Quietude e silêncio
Esses mestres são pessoas conectadas com suas histórias, seu lugar de pertencimento, sentem orgulho do aprendizado de seus ancestrais, percebem valor na cultura de seu povo. Ainda mais. Partilham traços que passam a dar pistas do que os faz tão únicos e essenciais.
Com olhar, escuta e espírito atentos, é improvável não sentirmos a presença das evidências dos laços das memórias que os unem.
Guardam histórias fortes, de superação, adversidade, provação, profunda privação – com frequência hostis – que deixam rastros em seu legado. Não de malquerer ou amargor, como é natural e digno se supor, mas de generosidade, leveza e gratidão. Com a vida, com os colegas de ofício, consigo próprio.
Por isso, não é raro que mestres sejam seres sedentos por ensinar, partilhar seus saberes, conhecimento, sabedoria sagaz. São indivíduos disponíveis a oferecer rumo, suporte e acolhida, a todo tempo. Naturalmente passam a ser quem se busca no anseio por aceitação, amparo, abrigo, reconhecimento. E assim, aos poucos vão deixando o papel de “meros” mentores que dominam um modo de fazer e passam a ocupar benemeritamente a atribuição de quem imprime parâmetros de conduta, guia com sua história de vida e ilumina com sua cosmovisão. Assumem a posição, enfim, de mestres na vida profissional e pessoal, emocional, não raramente psíquica, de aprendizes, e, com frequência, da própria comunidade. Esses seguidores passam a ser seus devotos em uma relação de apreço, afeição, deferência, adoração, entrega e fé. Como não rememorar com emoção a inesquecível figura de Dona Isabel Mendes e sua “presença” mais viva do que nunca, seis anos após sua partida no vilarejo de Santana de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha?
Vitoriosos por viverem de arte – e não apenas sobreviver – se orgulham em trabalhar dignamente e obter sustento com aquilo que amam, que compreender representar sua missão de vida, em um país onde é inegavelmente difícil ter na arte um ofício e meio de sobrevivência.
Apropriados de sua biografia, sabem da grandeza, essência, do valor cultural de seu trabalho. Celebram determinação, insistência, resistência (ainda mais, resiliência), ousadia e coragem. E muita fé. Sobretudo fé. Não apenas na vida, mas em si mesmos e em sua arte.
A quietude, muitas vezes incômoda a quem chega, indica que parecem saber que o “aceitamento” não se traduz em renúncia, mas em presença e paz. Em silêncio seguem plenos, e presentes.Por fim, tão ou mais primordial quanto todo o resto, estabelecem uma conexão vital com a arte. Algo que não se torna possível viver sem, abandonar, desistir. Não lhes permite escolha.
A ancestralidade que cura as feridas de um povo
Ao longo dos últimos meses, debruçada sobre uma extensa e densa pesquisa sobre os nossos mestres artesãos para o Projeto Rede Artesol, tive notícias da partida de alguns deles. Fato esperado, tendo em vista a idade avançada da maior parte, acumulando décadas de dedicação à sua arte. Eram notícias que chegavam com dor e pesar. Dona Teresinha, de Ingá, Paraíba, representante incansável da elaborada renda labirinto. Mestre Zezinho, de Tracunhaém, Pernambuco, que poucas semanas após a entrevista com o filho Nando veio a falecer e o carismático Zé do Ponto, que visitei recentemente em um rápido desvio que fiz para conhecer seu ateliê em uma viagem pelo sertão mineiro. Com as técnicas do trançado em couro, marcenaria e cestaria que acompanham a história dos tropeiros no Brasil há mais de 200 anos, José Sebastião Vaz se dedicava, entre outros fazeres, à produção de instrumentos musicais de percussão, como tambores, caixas de folia e pandeiros, ajudando a manter vivas manifestações culturais populares como o congado, dançado todos os anos na festa de Nossa Senhora do Rosário, considerada pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep) Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais. Por isso, perdas como essa são de valor inestimável.
Ele e outros artistas que partiram possuíam a vocação de expor o Brasil em sua rica pluralidade de expressões. Tantos outros que seguem na ativa permanecem fiéis a essa missão de manter vivos modos de criar e fazer que envolvem tempo e significado, despertando nossos valores essenciais, traduzidos em conceitos e em uma sofisticada estética cheia de identidade. Eles se nutrem – e nos nutrem – de uma criatividade intuitiva que nos transforma, mexe nas memórias e feridas do nosso povo. Nos reconectam, assim, com a sabedoria da nossa própria ancestralidade e nos abastecem com cultura, aquela que concede ao povo a possibilidade de construção (e re-construção) de sua própria narrativa. Alguns herdeiros desse saber fazer (e viver) têm nos alimentando com a esperança de um futuro ainda cheio de sentido, beleza e memórias.
A artista plástica e ceramista Andreia Pereira, de Andrade de Santana do Araçuaí – MG, por exemplo, aprendeu com a avó, dona Isabel Mendes,e a mãe, Glória Mendes, a arte de criar sua própria narrativa sobre a história do seu lugar e seu povo.Sobre a sua arte, escreveu Ferreira Gullar, em crônica publicada no Jornal Folha de S. Paulo “… não custa nada imaginar que uma nova arte esteja nascendo”. Andreia começou a modelar o barro ainda criança e, aos 14 anos, vendeu sua primeira peça, exibida com a produção da família numa exposição no Rio de Janeiro. Chegou a pensar em cursar arquitetura, mas optou por trilhar o mesmo caminho da mãe e da avó, inaugurando a terceira geração dedicada ao ofício. No entanto, foi a primeira a buscar orientação fora do círculo familiar: Foi morar em Belo Horizonte exclusivamente para estudar artes plásticas na Escola Guignard. Especializou-se em pintura e cerâmica e construiu na escola, com os colegas, um forno de barro típico dos artesãos do Jequitinhonha. Terminado o curso, deu aulas em Portugal e na Espanha, e retornou a Santana do Araçuaí para dar continuidade à arte da avó e de seus pais.
Agradeço a Deus pela minha avó-mãe que tem mãos abençoadas e um dom divinal. E o mínimo que posso fazer é agradecer à minha querida avó-mãe um pouquinho do que aprendi com ela e que Deus nos permita dividir o aprendizado que me orgulha tanto. Mãe, muito carinho, sua neta, Andreia.
Texto talhado pela artista Andreia em boneca de cerâmica em homenagem à sua avó Isabel
Esse tipo de história e tantas outras protagonizadas pelos mestres artesãos e seus aprendizes nos levam a enxergar o que estava esquecido na memória de quem somos e a possibilidade de nos conectarmos com nosso passado e futuro através do objeto. Objeto que transcende, carrega símbolos, memórias, saberes e intenções. E podem nos indicar a direção a seguir, em tempos que nos parece que nos perdemos de tudo, sobretudo de nós mesmos, pelo caminho.
Fonte: Catálogo Mestres Arte Artesanato
Rede Artesol
Vanessa Gomes
Formada em comunicação com especialização em design e branding. Atuou como diretora de arte e idealizou a Casa da Vila, um projeto que buscou ressignificar os espaços e canais de comercialização da arte popular e do artesanato brasileiro ao longo de 13 anos. Integrou equipes em várias iniciativas alinhadas a esse propósito e atualmente se dedica a pesquisa, conteúdo, curadoria e interlocução junto a artesãos, artistas populares e comunidades nos diversos territórios brasileiros.