O Re-inventar da tradição na contemporaneidade
Até onde o artesanato de tradição pode ousar se reinventar sem ameaçar sua ancestralidade? Qual o limite para o artesão ou o artista popular criar e inovar sem romper seu compromisso com a sua história?
Vanessa Gomes
O artesanato brasileiro de raiz é muito mais do que uma fascinante coleção de objetos com uma estética popular cativante. Nele estão contidos traços e elementos culturais riquíssimos, repletos de sincretismo que compõem o que entendemos por “brasilidade”. É fruto do encontro das culturas e saberes dos povos originários com os grupos étnicos escravizados no continente africano e trazidos para o Brasil no século XIX e os diferentes imigrantes europeus e asiáticos que, juntos, formam a matriz cultural brasileira. Desse encontro e da relação entre essas diferenças culturais e étnicas, os conhecimentos e saberes-fazeres tradicionais foram ganhando suas próprias feições, usos e práticas, o que conferiu tamanha singularidade a essa forma de expressão da nossa cultura popular.
Assim, o artesanato tradicional brasileiro é fruto de técnicas de criação e produção herdadas e invenções que nasceram a partir delas, dando origem a objetos carregados de expressão criativa e sentidos de pertencimento cultural, mas não apenas isso. Os saberes e fazeres tradicionais também dizem respeito a toda gama de relações que são estabelecidas com o local onde o artesão vive – as relações que ele tece com as matérias-primas, a forma ética com que as extrai de seu local de origem, com o conhecimento dos seus ciclos de crescimento. Falar de artesanato tradicional é também considerar as práticas sociais, econômicas e educativas da comunidade que sustentam e geram seu fazer e seus usos. Apesar do objeto artesanal ser resultado de uma produção individual, impregnado pela singularidade de quem o deu vida, ele remete à uma estética maior do que as preferências do artesão e de um coletivo de pessoas que partilham aquele conhecimento e aquela prática.
De acordo com os conceitos da própria Artesol, “o artesanato tradicional é fruto de um saber que tem sido passado de geração a geração. Essa transmissão acontece não apenas nos núcleos familiares, em que os saberes são transmitidos de pais para filhos, mas também em uma dimensão mais ampla, sempre com base em relações pessoais entre quem ensina e quem aprende. Essa dimensão ancestral é a maior fonte de riqueza do artesanato tradicional e o coloca em um lugar de grande importância na compreensão da singularidade da vida de cada grupo humano e suas relações com o território”.
Frente à cultura globalizada que tende a homogeneizar e padronizar as representações culturais, o artesanato tradicional cria espaços de resistência e salvaguarda dessa pluralidade de sentidos, fazeres, conhecimentos e afetos, cumprindo importante papel em uma dimensão política. Para além da arte erudita, sancionada pela crítica e pelas instituições, a arte popular é criada pelo povo, reflete sua concepção de vida e do mundo. Compreende um território onde o próprio povo é o elemento criativo determinante.
Seu caráter oral, informal de transmissão, cujas técnicas não são amplamente formalizadas em documentos, livros ou manuais colocam em alerta para o permanente risco de extinção e alimentam propostas de salvaguarda, nem sempre harmoniosas, já que trazem à tona um amplo debate que inclui questões como: “até onde o artesanato de tradição pode ousar se reinventar sem ameaçar sua ancestralidade? Qual o limite para o artesão ou o artista popular criar e inovar sem romper seu compromisso com a sua identidade?”
Assim, “o artesanato não acaba no objeto, mas começa nele que revela sempre algo maior e mais complexo que o tornou possível”, como conceitua a Artesol.
O artista popular
Todo artista é um artesão, porque possui domínio do fazer e detém a técnica, mas a arte popular traz uma dimensão além em relação ao fazer criativo do artesanato tradicional, que é a autoria, a criatividade própria do artista popular. Seu compromisso maior é a sua relação singular com o mundo, sua forma de expressão, sua estética, seu processo criativo, que – no caso do artesanato – é o domínio do conhecimento coletivo. A originalidade é presente, como consequência do desejo do artista de ir além, mas sem deixar de expressar forte indício de pertencimento cultural pois, assim como o artesanato, a arte popular expressa um saber, um modo de viver e pensar que extrapola o artista.
Um exemplo dessa capacidade única de imprimir no mundo suas perspectivas originais é o ceramista João Augusto Alves Ribeiro nasceu em Santana de Araçuaí, único distrito de Ponto dos Volantes, Vale do Jequitinhonha (MG). Ligado à BR 116 por onze quiômetros de estrada de terra, o lugar é conhecido pela produção em cerâmica iniciada há cerca de 60 anos pelas mãos revolucionárias da grande mestra da arte popular brasileira, Isabel Mendes Cunha (1924 – 2014). Com a técnica tradicional aprendida com a mãe “louceira”, ela perseguiu o sonho de modelar bonecas. O repasse espontâneo aos filhos, genro, nora e netos se dava através do tradicional modo de “aprender vendo alguém fazer”. Ela ministrou muitas aulas ao longo de seus 85 anos a quem quisesse aprender. E foram muitos. Deixou como legado uma legião de artesãos, seguidores e discípulos. Contemporâneos e novas gerações.
Augusto tem apenas vinte e três anos mas já acumula dezessete de experiência com o trabalho de moldar o barro, que conheceu aos quatro anos quando a mãe, Alice Ribeiro, que carregava com ela uma sacola de brinquedos para que o filho pequeno se ocupasse enquanto ela trabalhava. Foram muitas tentativas. Mas logo o menino já estava junto dela, investigando, brincando de explorar, tateando com as mãos pequeninas a textura fria do barro cru. Assim como as crianças fazem, “aprendeu vendo fazer”.
Hoje ele é um jovem artista já reconhecido. Das memórias dos tempos de infância e adolescência, guarda a presença ainda viva e generosa de Dona Isabel apontando melhorias num detalhe de feição, traço ou gesto de uma boneca.
Revelando sinais do que pode, porventura, ser nomeada como uma nova arte popular, Augusto e outros jovens artesãos e artistas, como Andrea, neta de Isabel, renovam a forma tradicional de trabalhar o barro e a estética da cerâmica do Vale.
A tez de aparência acetinada que Augusto entrega às bonecas é fruto de um incansável processo de acabamento, onde o artesão as acarinha até garantir que nada reste além de uma cútis invejável. Jovem como seu criador, a moça ganha contornos delicados, cabelo e maquiagem impecáveis. Os olhos, amendoados, sempre delineados por um contorno forte, cílios postiços, que realçam os traços sofisticados e confirmam a geração à qual pertence. Boca marcada por um batom vermelho, ou cor da pele, um discreto e elegante rubor nas maçãs do rosto. Cabelos penteados, volumosos e bem escovados.
Augusto abusa dos modernos tons terrosos, cinzas e nudes. Por fim, o que atualiza por completo sua obra: traços angulosos, que realçam uma beleza clássica, inspirados em sua cantora e compositora favorita – a britânica Adele. Outras criações – versões de mães amamentando, noivas, casais de idosos – cuidam para que o artista não se desligue da tradição do seu fazer, reinventado.
Uma arte tradicional e dinâmica
A arte é revolucionária em si mesma. Contém certa inconformidade que inquieta o artista no anseio por transformação: do mundo e da história. Os artistas populares, assim como outros, são indivíduos que possuem um dom, uma vocação e a necessidade de transcender uma realidade pífia. Ligada à experiência humana, histórica e atual, a criação artística é seu processo vital.
O universo da arte popular – dos costumes, religiões e festas que se revelam por seu intermédio e lhe servem habitualmente de tema – se reinventa em permanente movimento pelo imaginário coletivo. É um território complexo e dinâmico.
O patrimônio cultural em si é algo dinâmico. Encontra-se profundamente vinculado ao presente, ao território onde segue vivo e às condições de existência das comunidades e dos artesãos. Nesse sentido, os sabores e conhecimentos transmitidos de geração em geração são recriados e atualizados pelas pessoas de cada tempo. Como resultado do avanço desses debates, compreende-se a importância da salvaguarda a fim de garantir as condições sociais, econômicas e ambientais necessárias para que as comunidades, etnias e grupos tradicionais sigam com seus saberes, fazeres e expressões, se assim forem seus desejos. É imprescindível, porém, que sejam garantidas aos artesãos, artistas e comunidades as condições de escolha em relação às suas heranças culturais.
Diante de uma realidade já frágil do mundo do artesanato tradicional e da arte popular brasileira, a globalização e a padronização imposta pelo mercado são uma ameaça. Por isso, ainda mais, é preciso garantir que o artesão crie livremente, a partir das suas raízes culturais e da sua visão peculiar do mundo.
Na hora de criar, o artista popular, na sua condição marginal, nos surpreende pela inventividade espontânea que espelha um viver assumido, onde a imaginação reintegra e reinventa os objetos do existir, modificando-os e se modificando. Na arte popular, seus autores são gente do povo. Homens e mulheres para os quais não há distinção entre o ser e o fazer, que não dissociam a arte da vida. Artistas inventivos e originais cujas criações remetem a um conjunto de valores e identificam um modo de iluminar os valores identitários e sintetizar aspectos do pensamento coletivo.
A antagônica relação entre tradição e inovação está presente o tempo todo em nossa vida. De artistas e não-artistas. Temos nossas origens, mas também todas as influências do dia a dia. Caminhamos em constante movimento e mudança. Em seu fazer criativo, Augusto Ribeiro mistura tradição e contemporaneidade em uma reinvenção de um conhecimento herdado. Alguém que nos instiga a pensar sobre o direito do artesão de se renovar e de reinventar suas próprias tradições sem que o seu trabalho perca a capacidade de materializar sua própria identidade. Augusto mantém a tradição da técnica, mas inova, cria inspirado na contemporaneidade, com uma proposta inventiva, autoral e que faz uso de uma linguagem contemporânea nos permitindo experimentar que é possível inovar sem romper a tradição.
Rede Artesol
Vanessa Gomes
Formada em comunicação com especialização em design e branding. Atuou como diretora de arte e idealizou a Casa da Vila, um projeto que buscou ressignificar os espaços e canais de comercialização da arte popular e do artesanato brasileiro ao longo de 13 anos. Integrou equipes em várias iniciativas alinhadas a esse propósito e atualmente se dedica a pesquisa, conteúdo, curadoria e interlocução junto a artesãos, artistas populares e comunidades nos diversos territórios brasileiros.