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O sertão é dentro da gente: uma viagem rumo à civilização do barro no norte mineiro

Como uma viagem com meu pai pelo semiárido mineiro se tornou uma experiência de conexão com a cultura da nossa terra natal e com nosso interior a partir da inspiração de Guimarães Rosa e das ceramistas-poetas do Vale do Jequitinhonha (MG)

Camila Fróis


Minha família sempre teve espírito viajante e curioso. Quando eu e meu irmão éramos crianças, cortamos muitas vezes o estado de Minas de fusquinha com nossos pais. Era uma festa. Em época pré-GPS, parávamos nas bancas de frutas da estrada, entrávamos nas cidadezinhas históricas e em tudo quanto era venda e vilas do caminho com o pretexto de pedir informações. Aproveitávamos para ver o artesanato, experimentar a comida, as frutas, tirar fotos analógicas e visitar igrejas, mercados ou participar de festas locais. Qualquer feira de rua nos divertia.

Crescemos assim até que as pernas do meu irmão não cabiam mais no banco de trás do fusca e tivemos um upgrade para um celtinha que tinha bagageiro para carregar as coisas que nossos pais compravam no caminho. Apesar de uma formação simples, eles sempre tiveram muito interesse em arte, cultura, gastronomia e, especialmente, em história. Mas não só a história oficial contada nos livros, enciclopédias e revistas científicas que tínhamos em casa. Eles sempre gostaram muito de “assuntar” os “causos” das pessoas que cruzávamos no caminho (vendedores, cantadores, quitandeiras) e as histórias sobre os pratos que comíamos, as músicas que ouvíamos e as coisas que víamos.

Mesmo com um orçamento justíssimo, viajávamos para festivais de música, para eventos culinários e religiosos e até para assistir serestas, ou vesperatas (uma espécie de serenata invertida, em que os músicos cantam nas janelas para o público nas ruas), que acontece sempre na cidade de Diamantina. Voltávamos sempre com o carro lotado de farinha, rapadura, frutas do cerrado, cds de artistas de ruas, dicas de novos lugares para conhecer e muito artesanato. Eu disse muito. Meu pai e minha mãe eram absolutamente fascinados por objetos feitos à mão: esculturas de noivas, santos, cachorros, casinhas, colchas bordadas, oratórios, pássaros de madeira, bonecos de palha e miudezas diversas. Nossa casa sempre teve uma decoração meio barroca, por assim dizer. Cada cômodo era lotado de coisas muito aleatórias, às vezes estranhas, mas sempre divertidas. Nada combinava entre si, mas tudo fazia muito sentido, porque cada objeto parecia ter a alma dos lugares que tínhamos passado. Eles instigavam a vontade de voltar para a estrada para caçar novas memórias travestidas de coisas.

Na estrada do sertão mineiro

Alguns anos depois que minha mãe faleceu, convidei meu pai para refazermos um dos caminhos que costumávamos percorrer rumo ao semiárido mineiro, mais especificamente até o município de Turmalina, que é vizinho à terra natal da minha família. Seria minha primeira viagem sozinha com meu ele em um roteiro que tinha um sentido muito especial. Inspirada ou não pela paixão dos meus pais, anos depois de me formar em jornalismo, fui trabalhar na Artesol, uma organização que atua apoiando, articulando, formando, documentando e divulgando os artesãos e artistas populares  brasileiros para o mundo.

Foi por isso que convidei meu pai para me acompanhar até o Vale do Jequitinhonha, um dos principais territórios criativos do Brasil. Nesse importante polo de cerâmica figurativa, as mulheres superaram os estigmas da seca a partir da criação de objetos de barro, mais especificamente bonecas de cerâmica: uma civilização de mulheres feitas de terra, com as feições das próprias artesãs, vestidos muito bonitos e joias delicadas, que elas sempre sonharam em ter elas mesmas – tudo moldado no barro.

Além de uma viagem de trabalho para documentar a história dessas mulheres das comunidades de Coqueiro Campo (distrito de Turmalina), a viagem seria também um momento de conexão com meu pai. Nossa relação sempre foi intermediada pela minha mãe, a grande idealizadora e animadora das nossas road trips. Foi pensando nela que decidimos ir conhecer as bonequeiras.Temos uma coleção das bonecas do Jequinhonha em casa e queríamos saber de que tipo de coisa e histórias eram feitas.

Na nossa viagem até lá, como manda a tradição familiar, abandonamos a programação e mudamos o roteiro muitas vezes. Em Diamantina, nos perdemos e nos encontramos em uma trilha até a Gruta do Salitre, uma impressionante formação da Serra do Espinhaço, com 500 metros de profundidade, que tem forma de um castelo medieval. Dentro da gruta, a sensação é que as suas bordas formam o mapa do Brasil. Tudo de uma beleza e dimensão estarrecedores.

Ali em Diamantina, enquanto visitávamos o casario histórico e lojas de artesanato, alguém nos contou que era época da Festa do Rosário em Serro, uma cidade vizinha, conhecida pela produção de queijos. Não pensamos duas vezes e mudamos de rumo para incluir mais uma parada no roteiro. Chegando lá fomos hipnotizados pelo som dos tambores que homenageiam a padroeira dos negros, celebrada também com novenas, missas, procissões, fogos, danças e cantos.

A parte alta das festas são os grupos de congado, que cortam as ruas da cidade dançando e cantando, parte ainda em dialeto africano, com o acompanhamento de orquestras de instrumentos musicais como caixas de couro, xique-xiques, reco-recos. O ritmo devoto dos grupos, o batido dos tambores e a alegria da dança, da marcha, do compasso, tudo cria uma atmosfera inebriante.

Lá também experimentamos queijos maturados há 20 anos. Isso mesmo. Mesmo desconfiados, fomos instigados por um mestre queijeiro premiado na França a degustar um taco do seu tesouro: um queijo guardado em um baú há duas décadas, desde que ele começou a produzir as iguarias. Depois dessas sui generis experiências culturais e gastronômicas, seguimos viagem nos guiando pelo barulho das cachoeiras da Serra do Espinhaço, enquanto falamos pela primeira vez sobre coisas como saudade e memórias das viagens com minha mãe.

O Vale do Jequitinhonha e a civilização de mulheres moldadas no barro

Foi por esses caminhos que chegamos na hospedagem domiciliar da artesã Deuzani Gomes, na zona rural de Turmalina: um oásis. Em meio à paisagem de tons ocres do sertão mineiro, a sua casa é cercada de um jardim multicolorido, hortas com ervas fresquinhas, como sálvia e hortelã, e paredes cobertas de miudezas moldadas no barro: borboletas, divinos, flores e outras delicadezas (que aprenderíamos a fazer em um curso de cerâmica nos próximos dias).

O Vale do Jequitinhonha possui um desenvolvimento humano — histórico e cultural — que contrasta com as estatísticas do IDH e outros índices sociais. Um dos grandes responsáveis por esse desenvolvimento é a produção artesanal. Apesar do estigma da seca, agravado pela monocultura do eucalipto na região, as artesãs fizeram do barro retirado dos quintais um recurso cultural e econômico que mudou as perspectivas e estigmas de comunidades inteiras e projetaram seu trabalho nacionalmente com o status de arte popular.

Literalmente, as mulheres dali transformam a terra, o chão que a gente pisa, em obra de arte. Fazem dessa produção um ritual que mistura barro, água, fogo com uma sensibilidade que emociona quem testemunha de perto. Ver os objetos ganhando vida no forno também feito de barro nos quintais das artesãs é uma experiência linda.

Além de artesã, a nossa anfitriã Deuzani é também poeta. A poesia, porém, extravasa dos cadernos de desabafos (como ela chama) para os gestos, modos e experiências que ela cria. Na nossa chegada, nos recebeu fazendo uma queimadinha de casca de laranja (à base de cachaça flambada), que esquentou a cozinha no fim de tarde de inverno e deixou a casa toda quentinha.

Era nessa cozinha quentinha e aromatizada que ela contava as primeiras histórias sobre a região, o artesanato e a vida sozinha (porém nada solitária) no sertão. Era o ponto final da nossa viagem pelas estradas mineiras e o ponto de partida para uma viagem mais densa pela história do nosso interior, nossa cultura, o silêncio e a beleza que brota da simplicidade e da resiliência.

Nos dias seguintes, nos dedicamos a conhecer e aprender parte do processo criativo das artesãs da região, que vai desde a retirada do barro de barreiros nas redondezas até a delicadíssima pintura final. Entre a primeira e a última etapa, as artesãs quebram o barro, amassam, moldam, queimam, pintam, secam e criam os pigmentos com argila natural que dá origem a uma sofisticada paleta de tons que vão do ocre ao rosa chá. No intervalo dessas atividades, exploramos quintais enormes e muito interessantes, conhecemos flores e plantas do cerrado e visitamos a casa-ateliê da Zezinha, um museu a céu aberto,com verdadeiras instalações de barro espalhadas por um jardim que deixaria Burle Max com inveja. Degustamo, é claro, algumas galinhas caipiras, tropeiros e doces caseiros. Visitamos associações, entrevistamos um monte de gente, quebramos o carro na estrada e fomos socorridos.Em todas essas experiências, compartilhamos histórias de vida que se tocaram em muitos momentos e que nos tocaram de forma profunda.

Fica a dica!

Para quem está procurando uma experiência de viagem transformadora que revele a cultura popular do país, a nossa dica é a próxima saída do roteiro Do Barro à Arte, pelo Vale do Jequitinhonha. De 23 e 28 de julho o roteiro pelo Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais também contempla dois dias em Diamantina-MG, eleita Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. O diferencial e o privilégio desta experiência é a oportunidade de colocar a mão na massa junto das mestres-ceramistas de Turmalina/MG, no coração do Vale do Jequitinhonha. A turista, além de conhecer todo o processo produtivo das famosas bonecas e artesanatos do Jequi, poderá fazer obras de arte com as próprias mãos.

Rede Artesol

Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.