O universo criativo do São Francisco e o fluxo das águas
Já é consenso entre os acadêmicos que a Caatinga é um dos ecossistemas menos conhecidos cientificamente, além de ser marginalizado historicamente em termos de políticas de desenvolvimento social e de […]
Raquel Lara Rezende
Já é consenso entre os acadêmicos que a Caatinga é um dos ecossistemas menos conhecidos cientificamente, além de ser marginalizado historicamente em termos de políticas de desenvolvimento social e de preservação da biodiversidade que sustenta. Como patrimônio da Caatinga, temos a piracema que é um fenômeno biológico único. No contexto de história natural, é evidente a diversidade de ambientes e riqueza da flora e da fauna no encontro da caatinga com o rio São Francisco. É difícil, dessa forma, estimar a extensão da perda dos ecossistemas naturais nos últimos 500 anos.
O Rio São Francisco tem sido marcado por projetos desastrosos empreendidos pelo poder público e pelo Agronegócio. Ao longo da ocupação das Caatingas, espécies foram extintas, mas também processos ecológicos inteiros, como a Piracema e as enchentes reguladoras, através das quais tantas comunidades ribeirinhas, conhecidas como vazanteiros, puderam tirar seu sustento.
A Caatinga é uma formação vegetal que acontece na região Nordeste e no Norte de Minas Gerais.
Acontece que em algum momento da história a ideia da caatinga como um bioma inóspito e marcado pela miséria, fome e seca ganhou força no imaginário das pessoas, quando, na verdade, trata-se de um ecossistema diverso e único com dinâmicas ambientais muito próprias é únicas.
Através dos relatos de viagem realizados por diferentes naturalistas do século XIX, é possível ter uma ideia das drásticas mudanças ocorridas na paisagem do entrono do Rio São Francisco, nesses quase dois séculos. Em uma paisagem documentada por Von Martius e Spix, em 1818, se tem acesso a uma das lagoas do Rio São Francisco que possui muita similaridade com as lagoas do Pantanal mato-gorossesnse, com a presença da ave símbolo do pantanal, o tuiuiú. Algo impossível de se pensar quando observamos o Rio tal como se encontra hoje.
O São Francisco é um dos maiores rios da América do Sul
Salinização dos solos, açudes com água salobra, aumento das áreas desertificadas, baixíssimos percentuais de cobertura vegetal das matas ciliares e assoreamento.
Os vários ciclos econômicos como o do gado nos séculos XVI e XVII, das hidrovias, sobretudo com os vapores do São Francisco, das Hidroelétricas, das ferrovias e dos polos de irrigação subtraíram recursos naturais finitos, especialmente a água do São Francisco.
Na década de 1870 inaugurou-se a navegação a vapor pelo rio São Francisco, na região do Alto São Francisco, em Minas Gerais, onde o Rio das Velhas deságua no Velho Chico. As embarcações, muitas importadas dos EUA, prestes a se tornar sucata, foram reformadas e trazidas para o São Francisco, onde realizavam o trajeto de Pirapora (MG) até Juazeiro (BA). Os vapores consumiam uma quantidade absurda de lenha oriunda das matas ciliares. Com a demanda crescente de madeira para alimentar as fornalhas, a extração e o transporte ocorriam em regiões cada vez mais distantes, tornando inviável esse tipo de navegação.
Determinadas plantas aquáticas praticamente desaparecera com a construção das hidroelétricas.
A cultura do vaqueiro tem ligação íntima com as caatingas, pois era nas matas sertanejas que eles buscavam o gado perdido. O sumiço do vaqueiro é reflexo e ao mesmo tempo causa do desaparecimento da caatinga arbórea, principalmente aquelas às margens do Rio, para onde o gado se refugiava, principalmente nas estiagens. O ciclo do gado que também é conhecido como ciclo do couro, estabeleceu a primeira zona pecuária brasileira, expandindo-se daí para o interior do Nordeste. Foi um momento de interiorização da economia, antes muito concentrada no litoral. Assim, muitas áreas foram desmatadas e queimadas, para serem convertidas em pastagem para a agropecuária extensiva.
O São Francisco é um dos rios mais controlados pela intervenção humana, com a presença de cinco barragens: Três Marias, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso e Xingó. Essas hidroelétricas se beneficiam do potencial de desnível do rio. No entanto, a energia produzida que representa cerca de 15% da energia elétrica produzida no Brasil, nem sempre é utilizada no Nordeste, onde os danos ambientais ocorrem.
Antes da barragem de Sobradinho, havia várias lagoas temporárias altamente piscosas e administradas pelos municípios baianos. Quase todas desapareceram com o enchimento do lago, assim como cidades e povoados inteiros, como Remanso, Casa Nova, Santo Sé, Pilão Arcado e Sobradinho. O lago de Sobradinho é sem dúvida uma das maiores aberrações criadas no período militar.
O setor da agricultura é o que mais consome água do mundo. No Semiárido brasileiro, as áreas com culturas irrigadas estão se expandindo.
No Rio São Francisco as singularidades de unem a seu fluir encantado, adentrando no mundo de silêncios e veredas do Sertão, trazendo, na imensidão de suas águas, o porvir de um novo tempo, a força do sagrado e dos laços que entrelaçam os ribeirinhos ao Velho Chico.
Quase todo o Vale do Rio São Francisco era habitado por comunidades indígenas, em sua maioria Kariris, povo conhecido por sua mágica e rica mitologia, cujo papel simbólico da água é central.
Lamentavelmente, as sociedades modernas se ocupam e se deslumbram cada vez mais com os planos grandiosos que envolvem urbanização, industrialização e tecnologia. O paradoxo é que nessa obsessão, os olhos se tornam cegos para notar e se dar conta da abundância, da riqueza, complexidade e sabedoria presentes nas matas e biomas. Assim, a humanidade deposita no aço e no concreto a esperança de resolver seus problemas, quando na verdade, essa ilusão cria cada vez mais problemas que juntos têm composto uma conjuntura cada dia mais complicada de ser pensada.
O Rio São Francisco, no trecho em que passa pelo estado da Bahia, toma outra direção, deixando de correr no sentido norte e abrindo passagem para o leste, como se tivesse sido tomado de súbito pelo canto irresistível das sereias do mar. No novo rumo que trilha, desenha as fronteiras dos estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
O Velho Chico agoniza a olho nu, com pouco mais de 500 m3/s, e na sua foz o mar avança São Francisco adentro, já salinizando as águas antigamente doces das comunidades ribeirinhas.
Ao destruir a Amazônia matamos a bomba biótica que injeta água na atmosfera, ao destruir o Cerrado matamos nossos maiores reservatórios naturais, aquíferos como o Bambuí, Urucuia e Guarani. A riqueza derivada da rapinagem não tem fôlego e também entrará em colapso com o colapso de nossas águas.
Ultimamente estamos vivendo uma situação no rio São Francisco praticamente igual aos demais rios do Semiárido brasileiro, que são rios intermitentes. Os nossos rios do Semiárido não são perenes. Eles só correm nos tempos de chuvas com a água da enxurrada. Já que aqui no Semiárido, nós que somos da ASA temos ciência do com o subsolo cristalino, a água não penetra, ela escorre rapidamente ou para em algum reservatório de superfície ou vai embora por evaporação ou por escoamento.
O rio São Francisco era um rio perene e de alguma forma ainda é um rio perene, mas cada vez mais fragilizado. Quando a gente entra nesta situação recessiva das chuvas permanentemente, é sinal que aqueles mecanismos naturais dos aquíferos e dos afluentes que alimentavam o São Francisco, mesmo em tempo de seca, já estão comprometidos.
Além do mais, aumentou o uso do rio São Francisco intensamente, sobretudo para a irrigação. Realmente, a chuva agora passa a ser um fator de amenização, mas ela não resolve evidentemente um problema fundamental que é degradação da bacia e de alimentação da calha central pelos afluentes e pelos aquíferos que abasteciam o São Francisco.
Aquele mito de que o São Francisco tinha uma vazão segura de 1800m³/s, comprovadamente, há meses, que ele está muito abaixo sem que a gente saiba o que vai acontecer agora.
A transposição, efetivamente, ainda é uma promessa. Ela tem obras em construção, mas ela não retirou água do São Francisco. Então, a gente não sabe o que acontecer, qual vai ser o impacto real, na hora que começar a tirar água, sobretudo quando se está numa situação como essa. Um rio que tinha quase 3 mil m³ de água por segundo, agora tem 900m³.
Rede Artesol
Raquel Lara Rezende
Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.