
Os artistas que esculpem o imaginário do Vale do Catimbau
Conectando natureza e inconsciente, a rica produção criativa do Vale do Catimbau tem ultrapassado as fronteiras do agreste e protagonizado exposições relevantes, como a mostra que está em cartaz no Museu do Pontal, no Rio de Janeiro (RJ).

Artur André Lins
28 de março de 2025
Na fronteira entre o agreste e o sertão pernambucano, adentrando o semiárido e distante aproximadamente 290 km de Recife, localiza-se – numa extensão de 62 mil hectares entre os municípios de Buíque, Tupanatinga e Ibimirim – a reserva ecológica que atende pelo nome de Parque Nacional do Catimbau, conhecida popularmente como Vale do Catimbau. Morada de animais silvestres, o parque é repleto de formações geológicas impressionantes, esculpidas pelas intempéries que deixam rastros multiformes e cintilantes nos paredões de arenito, rodeados pela vegetação peculiarmente rebelde e espinhenta do bioma caatinga. No entanto, não apenas a paisagem natural é exuberante. A paisagem humana também salta aos olhos em sua riqueza e multiplicidade.
O Vale do Catimbau é considerado o segundo maior parque arqueológico do Brasil, dispondo de pinturas rupestres milenares, que atestam a antiguidade pré-histórica de ocupação da região. Além disso, o parque abriga uma população nativa, que habita povoados, sítios e aldeias indígenas em seu interior e também nos arredores, sendo que uma parcela importante ainda vive da agricultura e da criação de animais. Desde a década de 1990, o turismo tem se firmado no contexto da localidade, impulsionando novas formas de inserção econômica e profissional. Entre as novas formas de inserção, além dos serviços associados à infraestrutura turística, é possível apontar o surgimento do artesanato como fonte de obtenção de rendimento. Artesãos, sanfoneiros, poetas, contadores de histórias e raizeiros, por exemplo, marcam o prolífico ambiente cultural do Vale.
A hospedagem pode ser feita na cidade de Buíque (PE) ou na chamada Vila do Catimbau, um povoado que se situa na entrada principal do Vale. Para desfrutar das trilhas, conhecer os artesãos e se locomover bem no interior do Parque Nacional do Catimbau, é necessário contratar um serviço de guia turístico. Por ocasião da minha visitação, em julho de 2024, fui acompanhado pela agência Guia de Montanha, que realiza um trabalho de base comunitária atento aos atrativos naturais e culturais do lugar.
José Bezerra e o despertar do sonho

Não raro, localidades que concentram muitos artistas populares são marcadas pela presença de um indivíduo pioneiro que inspira a comunidade. Foi assim, por exemplo, com Mestre Vitalino e o Alto do Moura (PE), com Dona Izabel e o Vale do Jequitinhonha (MG) e com Fernando Rodrigues e a Ilha do Ferro (AL). No Vale do Catimbau, que atualmente abriga dezenas de artesãos, o indivíduo pioneiro é certamente José Bezerra.
Nascido em 1952, na cidade de Buíque, Bezerra conta uma história de vida que, até certo ponto, é representativa das camadas pobres da zona rural do sertão nordestino. Sem nunca frequentar a escola, desde criança, junto de sua família, passou a trabalhar. Aos 12 anos de idade, mudou-se para a casa de seu avô, no Vale do Catimbau. A partir de então, iniciou-se como lavrador, auxiliando no plantio do roçado e cultivando gêneros como a mandioca, a batata, a abóbora e a melancia. Na propriedade de seu avô, havia uma casa de farinha com a qual se produzia a tapioca, um item indispensável na dieta sertaneja. Quando adolescente, aprendeu a caçar no mato animais como cutia, veado, peba, utilizando uma espingarda, sobretudo nos períodos de seca, quando a fome apertava.
A trajetória de José Bezerra se destoa do comum ao final da década de 1990. “A arte veio pelo meu sonho”, diz. Em uma noite de domingo, pondo-se a dormir em uma rede, abraçado com suas ferramentas, Bezerra experimenta um chamamento onírico. Ele relata que, em sonho, recebeu a visita de uma entidade espiritual de rosto indefinido, que vestia um manto branco na cabeça. Essa presença misteriosa lhe comunicou o seu destino: “Você nasceu artista! São os mortos para dar aos vivos. Todos os bichos que você matou, você vai retratar na madeira”. Desperto, logo no dia seguinte, Bezerra, ao entrar na mata, encontrou uma madeira seca e caída à deriva na caatinga, a qual, no seu olhar predestinado, aparentava ser um tamanduá. O artista, afirmando possuir uma sensibilidade mediúnica, relatou-me outras ocasiões nas quais, através dos seus sonhos, descobriu o paradeiro de novos cepos largados no mato que, nas suas mãos, se transformaram em figuras.

A partir desse momento crítico, em suas andanças, Bezerra passou a enxergar animais nos troncos, galhos e raízes, identificando, por exemplo, tatus, gambás, cachorros do mato, socós, seriemas, bichos-preguiça. E com um facão e uma goiva, abria nas madeiras retorcidas uma boca, um olho, uma orelha, uma pata ou um chifre, sem lixar o material, deixando-o em aspecto bruto, rude. Ao acumular as suas peças, com o tempo, foi dispondo-as no terreiro defronte de sua casa, fincadas no chão. Esse movimento chamou a atenção de transeuntes até que a notícia chegou aos ouvidos do então prefeito de Buíque, Arquimedes Valença, que foi um importante incentivador dos artistas do Catimbau. O surgimento desse novo artista, já no início dos anos 2000, chegou ao conhecimento do então governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, outro incentivador e colecionador da arte popular brasileira, que passou a adquirir obras de José Bezerra e, eventualmente, a visitá-lo.
Em 2005, o artista fez a sua primeira exposição na Fenearte, a principal feira de artesanato do Brasil, localizada em Recife, no chamado Salão dos Mestres. O nome de José Bezerra rapidamente se tornou reconhecido no meio artesanal do estado de Pernambuco, até que ele foi incluído em uma publicação do Sebrae. A partir dessa publicação, a galerista Vilma Eid, proprietária da Galeria Estação de São Paulo, tomou conhecimento de Bezerra. Fascinada pelas suas obras, a galerista se dispôs a encontrá-lo em 2007, firmando uma parceria que resultou na divulgação nacional do artista. Foram muitas as exposições individuais e coletivas que José Bezerra participou em galerias e museus de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Brasília e do estrangeiro. Atualmente, não é incomum encontrar peças desse artista em feiras do alto circuito artístico, como a SP-Arte Rotas Brasileiras.

Valendo-se, principalmente, da imburana-de-cambão, madeira típica da caatinga, comprada de terceiros ou encontrada nas matas, José Bezerra dá vida a personagens zoomórficos e antropomórficos, por vezes bichos identificáveis, por vezes seres irreconhecíveis, por vezes figuras humanas míticas como o Pai da Mata, o Queixudo e o Adivinhão. O Pai da Mata costuma vir acompanhado de uma coroa. O Adivinhão é a representação de uma entidade que ronda as matas, protegendo os sertanejos. As figuras humanas tendem a ser maiores e verticalizadas, com uma face que é feita de cortes simples, marcando os olhos e a boca na horizontal e o nariz na vertical em formato retangular. O artista aproveita as entrâncias e reentrâncias, os veios e as fissuras na sua composição sobre a madeira. A superfície costuma ser áspera, mantendo-se a crispação da matéria-prima original. A talha é mínima, embora o gestual seja imponente, preservando a angulosidade com golpes ágeis que definem, nos animais, olhos vazados e bocas sutilmente abertas.
A criatividade de José Bezerra se mostra através de um exercício de imaginação. Ele observa o lenho e percebe nele uma forma pré-existente. Ou seja, a forma não é o fim, mas o princípio. Aqui, o que conta é o trabalho do olhar. Há, nisso tudo, um elemento de abstração. Os seus personagens parecem oscilar entre figuras cômicas, seres mitopoéticos e bichos agressivos que habitam um mundo hostil. José Bezerra, contudo, não se contenta em ser apenas um escultor. Trata-se de um artista múltiplo. Ele canta, toca o berimbau que ele mesmo confecciona, improvisa versos e conta histórias.
A arte como alternativa de sobrevivência
Longe de ser apenas um luxo ou um passatempo, o artesanato se configura, principalmente em áreas de maior carência, como uma alternativa de sobrevivência. Quando perguntado a respeito do motivo pelo qual permaneceu fazendo arte, José Bezerra disse: “Porque ela deu dinheiro. Quando fui fazendo, fui vendendo, fui vendo dinheiro, aí eu já saí do alugado, já deixei de trabalhar para os outros. Toda vez que eu olho um pau, já sei que ele vai me deixar uma grana. É o ganha-pão certo”.
Essa alternativa de obtenção de rendimento estimulou outros nativos do Vale do Catimbau a se introduzirem no universo da escultura em madeira. Esse é o caso de Luiz Carlos da Silva, popularmente conhecido como Luiz Benício.
Nascido em 1972, Luiz é oriundo de uma família de agricultores. Ele relata a sua infância e adolescência marcadas por momentos de forte privação material, sobretudo nos períodos de seca. Quando criança, confeccionava os seus brinquedos. Embora nunca tenha frequentado a escola, posteriormente se alfabetizou pela necessidade. Começou a trabalhar na roça aos 10 anos de idade. Depois, atuou como servente de pedreiro, lenhador e mecânico. Recusando-se a seguir os passos de seus pais, aos 17 anos, Luiz se tornou o primeiro guia turístico do Vale do Catimbau. Em uma de suas guianças, em meados da década de 1990, conduziu um turista para conhecer Manoel Santeiro em Ibimirim. Encantou-se com a possibilidade de produzir o artesanato.

No ano de 2000, Luiz Benício cruzou o destino com José Bezerra, que prontamente lhe desafiou a fazer um tatu. Observando o trabalho de Bezerra, Luiz enxergou uma oportunidade, quando iniciou esculpindo os seus tatus de madeira, mas logo diversificou a produção com figuras humanas. Em 2006, Benício foi o acompanhante de Bezerra na Fenearte, algo que lhe abriu o caminho para se inserir no circuito artesanal de Pernambuco. Daí por diante, trilhou uma trajetória de sucesso comercial em seu empreendimento, escoando o seu produto para vários estados do Brasil e até para o estrangeiro.
Logo no início de sua carreira, Luiz Benício captou a demanda do mercado por peças rústicas. Antes, ele alisava a madeira e, eventualmente, até pintava. O artesão recorda ter vendido peças de aspecto inacabado para um belga e um alemão, algo que lhe abriu os olhos para o gosto da clientela. Desde então, abandonou a tinta, a lixa e a grosa. Luiz utiliza facão, formão, furadeira e motosserra, ferramentas que ele aplica sobre a imburana-de-cambão e a jaqueira. A matéria-prima, oriunda de reaproveitamento, costuma ser comprada. Preocupado com a sustentabilidade, batizou o seu ateliê de Projeto Madeira Viva. Luiz produz em série alguns de seus modelos, mas também aposta em obras únicas. O seu carro-chefe é a cabeça, feita a partir de um traço que lhe é muito característico.
Inspirando-se na fauna e flora locais, o artesão cria bichos como tatus, tamanduás, gambás, cachorros; cria insetos como formigas e escorpiões; cria também diversos tipos de cactos. As suas figuras humanas assumem a forma de santos – Padre Cícero, Nossa Senhora, Santo Antônio, São Jorge –, de personagens folclóricos – Saci, Cangaceiro, Violeiro –, e de protótipos como o fotógrafo e o homem-flutuante. Os tamanhos são díspares, desde miniaturas até peças de 4 metros de altura. Há utilitários como bancos com figuras esculpidas nas extremidades. Entre as suas peças únicas, cito a obra “Apocalipse”, exposta no Salão de Arte Popular Ana de Holanda da Fenearte em 2024, que consiste na imagem de uma mulher ajoelhada sendo atacada por uma nuvem de gafanhotos.
Luiz Benício exerce uma grande influência sobre os demais artistas do Catimbau. Ao alcançar uma certa prosperidade, ele passou a adquirir, com regularidade, peças de outros artesãos iniciantes como uma maneira de estimular a produção local. Entre aqueles que carregam o traço de Benício, podemos citar a escultora Simone Souza, 43 anos. Essa artesã foi a primeira mulher do Vale a esculpir profissionalmente. Hoje, conforme conta, há, no mínimo, mais 9 mulheres que exercem o ofício, entre as quais destaca-se Dona Mocinha. Simone concentra a sua representação em figuras humanas, ressaltando o feminino em suas peças. A cabeça de mulher é o seu carro-chefe. Ela realiza modelos variados como mulheres com pote, mulheres com vassoura, mulheres com menino, beatas, vovózinhas e fotógrafas. Também trabalha peças únicas. Atualmente, Souza oferece oficinas para repassar o seu conhecimento adquirido ao longo de mais de 20 anos.

Gilvan Bezerra Cavalcante, 32 anos, está entre aqueles que Luiz Benício estimula comprando peças, distribuindo matéria-prima, oferecendo dicas e apresentando novos clientes. Tendo trabalhado como servente de pedreiro e colhendo madeira seca, com dificuldade de se empregar, a partir de 2019 iniciou-se no ofício artesanal. Gilvan realiza uma variedade de peças, desde animais inusuais em seu contexto de origem, como o gorila, a girafa e o hipopótamo, passando por figuras de rostos humanos expressivos, até obras gigantescas surpreendentes, algumas com mais de 3 metros de altura, representando homens e mulheres de corpo inteiro, que parecem ser dançarinos, haja vista o movimento, dado pelo encaixe da matéria-prima, dos membros superiores e inferiores.

Egnaldo Sampaio Araújo, conhecido como Guga, 41 anos, hoje divide o seu tempo entre a roça e o artesanato. O irmão, Novinho, também enveredou pela escultura. Com o recente aumento do fluxo no Vale do Catimbau, uma vez que o seu terreno fica no caminho de uma trilha bem frequentada, Guga consegue escoar as suas peças principalmente para os turistas, sendo o artesanato uma relevante fonte de renda. Ele apresenta uma produção singular, com destaque para figuras monstruosas, que lembram répteis pré-históricos agressivos, de bocas largas, dentes grandes afiados e corpo escamado. Também realiza imagens humanas e utilitários como colheres de pau e canecas de madeira.
A produção escultural do Vale do Catimbau cresceu significativamente nos últimos anos, colocando-se como uma alternativa de sobrevivência para muitas pessoas antes exclusivamente devotadas à agropecuária. Em parte, isso se deve ao reconhecimento de José Bezerra e Luiz Benício, dois importantes marcos da arte local, que funcionam como um chamariz para potenciais clientes. O turismo, organicamente associado ao artesanato, desempenha um papel fundamental nesse processo. A multiplicação do número de artesãos possui um efeito positivo sobre o contexto, oportunizando o surgimento de uma tradição comum, um patrimônio cultural. O artesanato, afinal, fortalece a autonomia financeira e promove a autoestima desses indivíduos, criando futuros possíveis e ratificando os valores estético-morais compartilhados que catalisam sentidos de pertencimento.
Exposição “José Bezerra e os artistas do Vale do Catimbau” no Museu do Pontal (RJ)

O Museu do Pontal declara que:
“A exposição, com curadoria de Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque, é o resultado de uma pesquisa realizada por mais de dois anos na região e marcou a inauguração do Jardim de Esculturas do Museu do Pontal, no Rio de Janeiro. O artista José Bezerra teve a oportunidade de conhecer o Museu do Pontal e aprovou a forma como suas obras foram expostas. Gilvan Bezerra, Dário Bezerra e Luiz Benício também participam. Além disso, foi produzido um filme intitulado ‘Zé Bezerra, Artista’, que teve sua estreia realizada junto à inauguração da exposição.”

Serviço
Quando: Quinta a domingo, das 10h às 17h30
Onde: Museu do Pontal
Endereço: Av. Célia Ribeiro da Silva Mendes, 3300, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (RJ)
Preço: Grátis
Período: Até Junho de 2025

Artur André Lins é doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. Pesquisa temas como artes visuais, patrimônio imaterial e economia criativa. Também é autor do livro “O circuito das artes populares no Brasil: o caso do povoado Ilha do Ferro”, publicado pela Editora Fino Traço.