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Patrimônio imaterial: a criatividade dos povos tradicionais é um dos nossos maiores legados

Camila Fróis

Raquel Lara Rezende


“Os objetos que fazemos e usamos dizem de onde viemos, o que somos e talvez digam algo sobre o futuro.”

Noel Frankham

Uma roda de capoeira no litoral baiano, uma toalha todinha de renda irlandesa criada por artesãs do interior de Sergipe, uma pintura corporal no rosto de um indígena do Amapá, uma receita de queijo artesanal preparada na Serra da Canastra, em Minas Gerais, um passo de frevo no meio do Carnaval de Olinda, ou até uma viola de cocho entalhada na madeira no Pantanal. Você sabe o que todas essas expressões (ou objetos) têm em comum?

Por dizer muito sobre as identidades do povo brasileiro, eles são alguns dos elementos considerados patrimônio cultural imaterial da humanidade. O que isso significa? De forma simplista, importa dizer que essas manifestações – entre algumas outras – sintetizam o modo particular de um povo de conceber e agir sobre o mundo de forma criativa, atribuindo sentido ao cotidiano.

Tecnicamente falando, o patrimônio imaterial trata-se de uma categoria de patrimônio cultural reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, que é associada a elementos abstratos ligados à ancestralidade, à espiritualidade, aos hábitos, aos comportamentos e aos costumes de determinado grupo social.

Essa patrimônio intangível se manifesta de forma lúdica, sagrada ou artística formando um grande mosaico de expressões que são mapeadas e categorizadas pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico (IPHAN). Hoje, de forma geral, o Patrimônio Cultural Brasileiro abrange quatro grandes categorias: Celebrações, que engloba festas religiosas e rituais, como o ritual Yaokwa, do povo Enawene Nawe e manifestações como o frevo, o jongo, o toque dos sinos em Minas Gerais; Lugares, como a Serra da Capivara, no Piauí; e Saberes, que abarca conhecimentos, técnicas e modos de fazer, como o modo de fazer renda irlandesa em Sergipe, entre outros.

Ao contrário do patrimônio material (que está associado aos elementos materiais e concretos, como obras de arte e igrejas), o patrimônio imaterial especificamente está ligado a elementos simbólicos e é transmitido de geração para geração, sendo constantemente recriado pelas comunidades a partir de sua interação com a natureza e com a sua história e gerando um sentimento de identidade e continuidade. O patrimônio, nesse caso, está ligado a um ritual ou a uma técnica de produção de um bem (como o jeito de fazer a viola de cocho por exemplo) e não ao bem ou ao objeto em si.

Nesse sentido, o fazer artesanal é um tipo de saber que representa um legado de altíssimo valor do país, tendo em vista a diversidade de modos de fazer, de processos, de técnicas artesanais, de formas de se relacionar com as matérias-primas, com a história de cada grupo e mesmo com outras manifestações populares como as festas folcóricas. A grande arquiteta modernista ítalo-brasileira Lina Bo Bardi já era uma entusiasta desse patrimônio imaterial mesmo antes de todas as políticas de reconhecimento. Ela dizia que o Brasil tem coisas maravilhosas de manualidades. “Todos os apetrechos, os instrumentos de trabalho…È uma aristocracia ligada ao mundo popular, às civilizações do litoral ou do sertão, uma inteligência camponesa e artesanal que procura na terra e na condição humana a sua expressão”.

Os órgãos culturais de salvaguarda

A criação de políticas públicas voltadas para a valorização dessas expressões são muito recentes. Apenas a partir do ano 2000, essas manifestações passaram a ser reconhecidos como patrimônio através da criação do Registro e do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial que formalizaram, no âmbito jurídico, a proteção do Estado às diferentes manifestações culturais, bens e expressões que compõem as referências compartilhadas por um grupo comunitário ou social, em território brasileiro. Esse passo foi de grande importância e é fruto de mudanças de pensamento em torno das temáticas da identidade cultural. Hoje, além do IPHAN, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) também atua na valorização e salvaguarda desse tipo de patrimônio.

O IPHAN responde pela conservação, salvaguarda e monitoramento dos bens culturais brasileiros e o INPI pelas Indicações Geográficas (IG) de procedência – ferramenta criada para valorização e preservação dos saberes e fazeres de bens culturais. O conceito está ligado ao termo francês savoir-faire, ou seja, o saber fazer, algo como o know-how, utilizado no mundo empresarial para definir a habilidade ou conhecimento em uma área de atuação. No caso da IG, ele significa que uma determinada região conquistou reputação pela excelência na criação de um produto ou na prestação de um serviço, o que gera uma valorização cultural e comercial. Além de conceder o selo para produtos, o INPI pode conceder o selo para associações de artesãos que possuem um modo de fazer específico, como é o caso das bordadeiras de filé e da região das Lagoas Mundaú e Manguaba de Alagoas.

O processo desse bordado envolve técnicas específicas como a confecção da rede que é usada como suporte num tear de madeira onde são criadas as tramas (com combinações de tons e cores diversas) que darão forma ao filé. Os pontos que formam essas tramas são  próprios do universo feminino e da região: arroz, bom gosto ou rosa, espinha de peixe, besourinho, jasmim, casa de noca, cerzido, esteira, vai-vem, etc. Por isso, o resultado e a sofisticação são tão peculiares do território onde esse filé é desenvolvido.

Os saberes dos povos originários

A preocupação com o Patrimônio Cultural, enquanto assunto do Estado, surgiu na Era Vargas que tinha como parte importante de seu projeto de Governo, a construção de uma identidade nacional. Entre 1937 e a década de 1960, muitos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos, monumentos históricos, igrejas, entre outros, foram reconhecidos como Patrimônios Nacionais. Nesse momento, a noção de patrimônio estava vinculada à sua dimensão material e ficava a cargo de especialistas e intelectuais da área da arquitetura, principalmente que se dedicavam apenas a olhar para monumentos que faziam parte do processo de colonização e que representavam referências culturais e artísticas de origem europeia.

Vale lembrar que o país tem menos de 200 anos de independência em relação à Portugal e foi somente a partir do começo do século XX que se começou a pensar acerca da “Identidade Brasileira”.

Muitos pesquisadores e intelectuais, inclusive, defendem que se pense identidade no plural para dar conta de se discutir todas as referências e expressões próprias daqui – graças às nossas dimensões continentais e todas as influências nativas e estrangeiras.

Desde antes do Brasil ser colonizado, inclusive, o território já era marcado pela diversidade e a particularidade das expressões das diversas etnias originárias. Mais de 1400 diferentes povos viviam nessas terras e mais de 1.200 línguas eram faladas. Hoje, cerca de 252 etnias indígenas seguem presentes com suas diferentes cosmologias , ou seja, modelos que expressam suas concepções a respeito da origem do Universo e de todas as coisas que existem no mundo, que descrevendo o surgimento do homem, as relações ecológicas entre animais, plantas e outros elementos da natureza através de mitos.

A história da colonização brasileira e dos demais países americanos, de forma geral, foi marcada pelo não reconhecimento das culturas e desses saberes dos povos ameríndios, assim como dos africanos. Dessa forma, tornou-se importante pensar as ausências e os silenciamentos dessas tantas vozes e formas de vida existentes no Brasil, ao se falar de identidade e memória brasileiras.

Hoje, uma manifestação cultural artística ligada aos povos tradicionais que é reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro é a Pintura Corporal e Arte Kusiwa. Trata-se de um sistema de representação gráfico próprio da etnia indígena Wajãpi, do Amapá, que  foi inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão, em 2002. Nesse caso, a criação gráfica é a materialidade desse bem, que tem todo um sistema de conhecimento, práticas culturais, carregando a herança cultural de seu povo.

As políticas de registro e tombamento

Os avanços nesse debate redimensionaram o tema do Patrimônio Cultural e as políticas públicas de patrimonialização. No âmbito internacional esse processo de reconhecimento dos bens imateriais veio em 2003 quando a UNESCO promulgou a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial que passou a vigorar no Brasil ao ser ratificada em 2006.

Além das políticas nacionais, os estados e municípios também possuem órgãos e políticas próprias voltadas para a preservação. O tombamento e o registro de bens culturais são instrumentos cada vez mais requeridos, como forma de resistência cultural e social que se dá pelo primeiro passo do reconhecimento da importância e relevância de certos bens culturais e saberes. 

Li lingues differe solmen in li grammatica, li pronunciation e li plu commun vocabules. Omnicos directe al desirabilite de un nov lingua franca: On refusa continuar payar custosi traductores.

Raquel Lara Rezende é colaboradora da Artesol. Formada em Comunicação Social, tem doutorado em Educação e transita entre as mais diversas possibilidades de expressão da cultura popular, seja como pesquisadora, artista ou jornalista.