Reflorestar: artesãos protegem e replantam áreas em diferentes biomas do país para garantir manejo sustentável das matérias-primas
Da caatinga à Amazônia, passando pelo ameaçado cerrado brasileiro, artesãos tem se dedicado a iniciativas de pesquisa para aprimorar o manejo sustentável de matérias-primas como madeiras e fibras e criado áreas para replantar espécies que correm o risco de desaparecer devido ao aumento do desmatamento no Brasil.
Tayana Moura
Diante das constantes ameaças à preservação dos biomas brasileiros, com biodiversidades tão únicas, já não é mais possível nos encantarmos com a beleza e com o lirismo que emanam do artesanato de raiz cultural sem deixarmos de questionar: qual a origem dessa peça, qual a relação de sua matéria-prima com a preservação do meio ambiente?
Isso porque, segundo o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil – RAD 2021, emitido pelo MapBiomas, em 2021 houve aumento na devastação em todos os seis biomas brasileiros, na comparação com 2020. A caatinga, o único exclusivamente brasileiro, ocupa o terceiro lugar neste índice, chegando a 7% da área total desmatada. E vem de lá, do povoado Ilha do Ferro, no semiárido alagoano, o exemplo de como a arte popular feita em madeira pode coexistir com a preservação da natureza – que ali se desdobra em uma mistura de caatinga com o rio São Francisco.
Conhecido pelo aguçado e criativo imaginário, que enxerga seres fantásticos nas formas retorcidas das árvores, o mestre Petrônio Farias é referência na justa relação com a matéria-prima de seu trabalho. O primeiro contato de Petrônio com o artesanato foi ainda na infância, na produção dos populares ex-votos. Mas foi a partir de um “desafio” lançado pelo saudoso mestre artesão Fernando Rodrigues, da Ilha do Ferro, em março de 2001, que sua vida começou a mudar através da atividade artesanal.
Dividido entre os ofícios de artesão e agricultor, Petrônio aprendeu com maestria a manejar a terra, observando os ciclos da natureza. Essa sabedoria somada ao respeito ao meio ambiente e uma bonita perspectiva de futuro fez brotar uma reserva florestal em meio à caatinga, onde ele já plantou dezenas de mudas de árvores, como angico, craibeira e mulungu.
“Hoje, minha produção é totalmente sustentável. Trabalho com estacas, raízes, tábuas velhas e resíduos de outros artesãos. Além disso, convidei meu filho, Yang, também artesão, a replantar árvores. Uma parte do dinheiro que conquistei até aqui, investi em uma reserva florestal onde as pessoas extraíam madeira antigamente. Lá, a gente está replantando muitas espécies nativas. Essa é a forma que achei de compensar aquilo que prejudiquei antes. Se eu tirei no passado, eu quero recompor no presente”, reflete.
Os filhos de Petrônio têm o pai como inspiração desde cedo, porque é sobretudo pensando nas próximas gerações que ele aposta em uma existência mais responsável e sustentável. Para o artesão, o futuro do planeta está ameaçado se continuarmos apenas explorando a natureza sem qualquer compromisso ambiental.
“Você tira da natureza hoje e faz uma peça. Provavelmente essa árvore, se você plantar agora, vai levar dezenas de anos para crescer e servir para fazer outra peça daquela forma. Na nossa região, espécies de árvores nativas, como pereiro, craibeira e amburana de cheiro, futuramente podem não existir. Preservar é cuidar da vida. Se não preservar, nenhum filho nosso vai ter futuro”, alerta.
No Cerrado, o Mestre Juão de Fibra começa a plantar a esperança
Segundo maior bioma brasileiro, o cerrado também sofre os efeitos da devastação desenfreada. Em Novo Gama, Goiás, o Mestre Juão de Fibra, conhecido pelo expressivo trançado com o capim colonião, é um outro exemplo de artesão comprometido com o replantio de plantas nativas ameaçadas.
Com a expansão das áreas urbanas e o consequente desmatamento, o artesão passou a ter dificuldade para encontrar a matéria-prima do seu trabalho. E assim como Petrônio, da Ilha do Ferro (AL), também reuniu recursos próprios para investir em um grande terreno, com a premissa de iniciar o cultivo de diversas fibras, transformá-lo em uma área de preservação e criar um centro de referência do capim colonião.
Para viabilizar este importante projeto, um financiamento coletivo foi criado (você pode contribuir clicando aqui) com o objetivo de realizar, em uma primeira etapa, a limpeza do lugar, localizado próximo a uma nascente, e a instalação de cercas de proteção. A iniciativa de Juão de Fibra representa um verdadeiro legado para as futuras gerações daquela região. Além de garantir o replantio, o mestre quer criar uma espécie de acervo botânico das fibras. “Mesmo em um espaço privado, todos poderão ter acesso a esta área preservada para conhecer um pouco da história do nosso capim colonião”, destaca.
O manejo do miriti que mantém o artesanato vivo e a floresta de pé
Se a maior floresta tropical do mundo agoniza e pede socorro frente a tantos crimes ambientais deflagrados nos últimos anos, os defensores da natureza também estão lá como exemplo de resistência e manejo sustentável de matérias-primas. Afinal, com a floresta de pé, o artesanato cultural da Amazônia segue existindo e sendo fonte de renda para diversas populações.
E quem nos apresenta uma produção artesanal comprometida com a preservação da biodiversidade amazônica é a Associação Arte Miriti de Abaetetuba – Miritong, no Pará. A criação dos brinquedos de miriti, uma tradição rica em valor cultural, passa pela extração da palmeira miritizeiro. E é este processo de manejo que, de acordo com Valdeli Costa, criador da Miritong, vem sendo objeto de estudo científico desde 2006, coordenado pelo Centro Internacional para a Pesquisa Florestal (CIFOR).
A atividade do grupo com o manejo de miriti começou em 2002, mas foi a partir de 2006 que passou a contar com o acompanhamento técnico da Universidade Rural da Amazônia – UFRA, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA Pará e da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater).
“Com a articulação desse importante grupo de apoio, iniciamos a pesquisa do miriti, para que, ao final desse estudo de impacto da atividade sobre o desenvolvimento da palmeira, possamos dar entrada no pedido da Indicação Geográfica do miriti. Atualmente, como a palmeira demora muitos anos para chegar em sua fase adulta, a pesquisa segue em andamento”, explica Valdeli.
Para a produção artesanal, de acordo com os estudos, é possível começar a coletar a matéria-prima da palmeira do miriti a partir dos dois anos. No entanto, a área dedicada ao manejo ainda não supre toda a produção do artesanato da Miritong.
Por isso, hoje, parte da matéria-prima que o grupo utiliza em sua produção artesanal é adquirida de extrativistas ribeirinhos, que coletam a folha do miriti para a confecção do paneiro, espécie de cestaria típica da região. Os artesãos utilizam exatamente as partes que seriam naturalmente desperdiçadas pelos ribeirinhos – mas que, de toda forma, logo se decomporiam na natureza.
“Em paralelo a tudo isso, nós realizamos um trabalho intenso de conscientização nas comunidades. Orientamos sobre como plantar e coletar, qual a melhor lua para coletar, a forma de secagem. Fazemos isso há bastante tempo e tem dado muito certo por aqui”, comemora Valdeli, que também ensina as técnicas do entalhe e pintura dos brinquedos para as crianças da comunidade. Para que elas também tenham a oportunidade de atuar como artesãs daqui a alguns anos, os escultores de agora precisam seguir à risca os cuidados com a palmeira tão preciosa para a economia, a cultura e o futuro de Abaetetuba.
Rede Artesol
Tayana Moura
Tayana Moura, alagoana, é jornalista, produtora de conteúdo e artista têxtil. Como boa entusiasta dos temas, adora ouvir e contar histórias sobre cultura, artesanato e arte popular brasileira.