Rendeiras da Aldeia, a sororidade na moda
A estilista Ivi Rufino atua com produções éticas na área de moda. Em sua primeira colaboração para a Rede Artesol, ela conta sobre sua experiência com as Rendeiras da Aldeia, um grupo de mulheres de Carapicuíba (SP) que se reuniu por conta de um projeto social que atendia seus filhos. Acabaram aprendendo a fazer a renda, a gerir negócios e a criar moda. Hoje, elas provam que a sororidade é uma das tendências que veio pra ficar
Para uma mulher como eu, que trabalha há quase 10 anos como facilitadora de produções ético sustentáveis, nada é mais gratificante do que testemunhar um grupo de mulheres que passou por minha trajetória, alçarem voos maiores a partir da educação, do trabalho com artesanato e da sororidade entre elas.
O grupo Rendeiras da Aldeia faz parte da OCA – Escola Cultural, um espaço que atende crianças e adolescentes com atividades de contraturno, em Carapicuiba, no interior paulista, mais precisamente no bairro da Aldeia, patrimônio tombado e considerada a única antiga vila jesuítica preservada no Brasil – sua formação data de 1580. Lá são desenvolvidas atividades voltadas a pesquisa das manifestações da cultura tradicional brasileira promovidas nas artes, na dança, na música e no brincar.
Chegar ali é encontrar um oásis, um lugar onde se pode sempre aquecer o coração com afeto, relações cooperativas, comunitárias. É poder sempre degustar um bolo quentinho ao final da tarde enquanto se assiste as crianças brincando. Lá somos convidados a lembrar o que nos torna de fato humanos. È ali onde as exímias artesãs desafiam o tempo em plena região metropolitana de São Paulo pois resgatam uma expressão cultural que vem sendo esquecida em um mundo da moda pautado pela alta produtividade.
A história deste grupo surge do olhar de alguém que sabe o poder transformador da educação e da generosidade, Lucilene Siva, coordenadora de projetos na OCA, para uma das mulheres que hoje faz parte do coletivo. Na época, Aliane Lindolfo mantinha os filhos, hoje educadores na própria instituição, em atividades culturais. Lá, ela passou a ser alfabetizada e deu início a um primeiro grupo de mulheres.
Cheguei através do meu cunhado que trazia meus filhos na OCA, também analfabeto… Eu tinha o sonho de assinar meu nome, porque antes eu assinava com o meu dedão… Educação era uma coisa que a vida no corte da cana no sertão de Pernambuco não me proporcionou!
Aliane Lindolfo
Primeiramente voltadas aos trabalhos manuais gerais, as mulheres do grupo iam transmitindo os conhecimentos prévios que cada uma tinha, umas às outras. O coletivo passou então a ser o responsável pela confecção da indumentária tradicional usada nas apresentações realizadas pelas crianças da instituição e a compor o Núcleo De Pesquisa e Criação do Figurino e Indumentária Brasileira da OCA.
Dali em diante, a iniciativa cresceu e chegou a formar mais de 20 mulheres em diversas técnicas até a chegada de Wilma da Silva, nativa de Pesqueira (PE), umas das regiões referência na produção da Renda Renascença no País que passa a ser a grã mestre de ofício para o grupo batizado de Rendeiras da Aldeia.
Tive a oportunidade de estar mais próxima a esse coletivo em quando fiz parte um time de educadores do Instituto Ecotece, uma ONG que trabalha com conscientização de consumo, desenvolvimento e fabricação de produtos éticos para o mercado da moda. Durante o ano de 2016, geríamos um programa de parceria com grupos de economia solidária, marcas, estudantes de moda e o terceiro setor, para potencializar a autonomia de grupos de produtores nas áreas de costura e artesanato. Esses coletivos buscaram nossa iniciativa, pois queriam aumentar seu grau de profissionalização e fortalecer seus empreendimentos. Ainda desse projeto resultaram as parcerias de co-criação entre a marca Cavaleira e o coletivo CUPINS, de serigrafia e também uma ação entre Flávia Aranha e Arteiras Maristas, um grupo de bordadeiras.
Quando conhecemos as Rendeiras da Aldeia, elas ainda não se compreendiam como uma possibilidade de negócio autossustentável. Tinham bastante resistência a mudanças em relação à técnica para torná-la comercialmente mais viável e apenas vendiam suas peças em feiras de artesanatos em áreas próximas à instituição. Possuíam dificuldade com relação a precificação e dimensionamento de prazos. Como resultado, estavam longe da autonomia financeira.
Ainda assim o terreno era fértil e a semente plantada lá atrás germinou e está dando frutos nas mãos de mulheres potentes. Desde esse projeto elas não pararam de acumular conhecimento. Já participaram de outras formações viabilizadas pelo Instituto C&A e outros parceiros e estruturaram melhor a frente de cursos que praticamente não existia.
Todas essas parcerias e apoios acumulados possibilitaram que o negócio, aos poucos, fosse se tornando mais sustentável do ponto de vista financeiro. Com um planejamento mais organizado, elas tiveram mais segurança para abrir a sua própria loja na vila histórica do bairro e a criar sua primeira coleção. Hoje parte delas já deixou os outros trabalhos para atua exclusivamente com a renda por conta da demanda.
Neste último encontro, as vi mais abertas ao novo, a experimentação de materiais, a desenvolver padrões de desenhos, a criar pontos e se envolver em criações coletivas com marcas de moda que conseguem respeitar o tempo do modo artesanal de fazer. É um grupo que se reinventa e ao mesmo tempo respeita a tradição quando atua como pássaro disseminador de sementes, ajudando na profusão da técnica pelo Brasil afora.
Além disso, elas conseguem construir seu negócio com base em algo que está no auge da moda, a sororidade. São mulheres que trocam suas experiências de vida tão plurais e fazem escolhas coletivas para seu negócio, dividem responsabilidades e motivos de celebração, se motivam, se apoiam e – ao mesmo tempo – conseguem o ter a oportunidade de acompanhar de perto o crescimento dos filhos e apoiar no desenvolvimento de outras crianças da comunidade.
“Eu era mãe e esposa, eu não era a Lucilene. O meu desejo… eu tinha, mas não colocava em prática e quando eu vim para o grupo eu ganhei asas! Eu vi o quanto eu cresci como mulher!”
Lucilene Souza
A meu ver, tudo isso só gerou estes resultados, pois essas mulheres vêm tecendo um desenvolvimento integral junto ao seu negócio, em que ambos crescem juntos. Tudo só se torna possível, pois além de valorizarem os aprendizados e garantirem uma fonte de renda, elas conseguem desenvolver essa rede de apoio que as empodera para desenharem juntas sonhos maiores.
Só consigo ser muito grata por ser parte desse caminho!
*Ivi Ruffino é artesã e Coordenadora de produções éticas na moda. Desenvolve projetos e trabalha pela humanização da relação entre todos os elos da cadeia e valorização de artesãos e produtores.