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Rota do Artesanato Brasileiro: Aldeia Multiétnica (GO)

Camila Fróis


Em todo o Brasil, os polos de produção artesanal são cercados de natureza exuberante, cultura popular e histórias inspiradas no universo lúdico do interior do país. Há dois anos, uma equipe da Rede Artesol, projeto criado para promover a inclusão social dos artesãos brasileiros, viaja por comunidades tradicionais com a proposta de documentar técnicas seculares, promover capacitações e criar conexões entre os artesãos e o público, fortalecendo seus negócios. Ao todo, a iniciativa – que conta com o patrocínio da Vale – já capacitou mais de uma centena de associações e artesãos que vivem em palafitas da floresta, em casas de pau a pique no sertão, ou em vilas à beira do Rio São Francisco, entre outros territórios em todos os biomas

Nesse período em que todos (que podemos) estamos recolhidos em casa cuidando coletivamente uns dos outros, gostaríamos de te convidar a viajar com a equipe Artesol através das imagens e histórias registradas nos quatro cantos do país. A cada semana, um consultor diferente vai contar sobre a sua viagem por um destino e compartilhar saberes e histórias sobre mestres da cultura popular, sobre rituais relacionados à produção da cerâmica, ou da xilogravura, sobre a hospitalidade de pousadas domiciliares no Vale do Jequitinhonha (MG), sobre o ritual da colheita do capim dourado no Jalapão (TO), ou sobre os a realidade de artesãs que trançam as fibras brasileiras na maior floresta tropical do mundo, entre tantas outras narrativas. Vamos juntos?

Chapada dos Veadeiros

O primeiro território da Série Rede Artesol na rota do Artesanato Brasileiro é a Aldeia Multiétnica, um lugar muito especial que fica na Chapada dos Veadeiros (GO), no coração do cerrado. Uma vez por ano, indígenas de diferentes etnias de todas as partes do Brasil se reúnem nesse espaço para celebrar e compartilhar sua cultura, sua identidade e seus desafios para se manterem vivos e conectados com suas tradições. São duas semanas de vivências, rituais, debates e trocas em uma feira com produção artesanal de todos os povos presentes. Quer saber como foi o último encontro? Confira os detalhes nos próximos posts. 

Em 2019 eu participei da Aldeia Multiétnicajunto à coordenadora da Artesol,Josiane Massone da coordenadora técnica da Rede Artesol,Sheila Maiorali. A deslumbrante Chapada dos Veadeiros é cenário desse encontro tão especial entre 10 povos nativos diferentes de todo o Brasil. Nosso foco era ampliar a Rede Artesol para novos territórios criativos do Brasil incluindo associações e iniciativas indígenas de produção e comercialização do artesanato tradicional. Foi uma oportunidade de nos dedicarmos à pesquisa e à articulação direta com os indígenas e com organizações de apoio a etnias brasileiras. Durante uma semana, participamos de importantes diálogos e vivências que afirmam e valorizam a ancestralidade, os saberes, a espiritualidade, a estética e o modo integrado de se relacionar com a natureza dos povos originários. Na primeira foto, estou com a Lara, da etnia Guarani!

Ancestralidade e estética

O Brasil tem, ao todo, 305 etnias que falam ao menos 274 línguas – um dos países com maior diversidade sociocultural do planeta.A Aldeia Multiétnica dá uma mostra dessa potência, ao unir, durante 15 dias, uma dezena povos indígenas, além dos brancos, proporcionando um ambiente de aprendizado e encontro de expressões, símbolos e modos de interpretação do mundo. Tudo isso embalado em muita cantoria ouvida pela aldeia em diversas línguas. As pinturas também traduzem essa riqueza com grafismos próprios de cada etnia e durante esses dias do evento praticamente todo mundo da vivência – indígenas e não indígenas – acabava se pintando com diferentes grafismos que criavam no coletivo criavam um efeito muito bonito. As tintas são feitas a partir de elementos naturais como urucum, jenipapo e açafrão. A diversidade de formas e cores revelam diferentes sentidos, indicam o que o indivíduo representa no grupo e seu estado civil, ou podem demonstrar sentimentos desde os mais felizes até os de indignação. Há também pinturas específicas para diferentes rituais.

A pintura é só um dos elementos da cultura indígena, mas a beleza da ancestralidade se manifesta em outros elementos na força, na estética, na sabedoria e na memória que perpassa gerações dos waurás, mehinakos, guaranis, krahôs, yanomanis, kayapos, huni kunis, entre tantas outras civilizações da floresta, do cerrado, ou mesmo do semiárido como os funi-ô. Na concepção indígena, homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com ações interdependentes. Um dos aspectos dessa concepção se traduz nas manifestações artísticas que nascem da conexão primordial entre homem e os recursos naturais (incluindo materiais, formas, pigmentos). Por isso, em cada objeto, em cada ritual, em cada gesto a arte surge como expressão de força e contato com o mundo místico, pois a beleza é um atributo divino nessas culturas, além de ter um profundo sentido de identidade. ·A riqueza da cultura ancestral desses povos manifesta-se de diferentes, formas. Na Aldeia multiétnica, cada povo, por exemplo, tem sua oca, com sua própria arquitetura. Uma construção muito interessante é dos povos Yawalapiti (foto) que é uma casa coletiva e, no evento, recebe todos os povos do Xingu. Já a casa dos Yanomami tem forma circular ou poligonal. A parte superior é aberta para permitir a penetração da luz solar, a saída da fumaça das fogueiras especialmente na lua cheia e a contemplação da lua. È nessa parte central da Shabona (como é chamada a casa yanomami) onde se realizam os rituais, festas e cerimônias durante a Aldeia Multiétnica.

Coletividade

A cada dia do festival, uma das etnias anfitriãs liderava a programação com com espaço para a manifestação de seus mestres, artistas e líderes. Eles conduziam dias de rodas de conversa, debates, realizavam apresentações, organizam brincadeiras e lutas indígenas e, em geral, terminavam o dia com uma festa ou ritual ou até mesmo com um ensaio de orquestra indígena que se montou durante o evento. Depois cada grupo se recolhia próximo às suas ocas. Muitos seguiam noite adentro cantando e tocando em volta de suas fogueiras onde podíamos nos achegar. Eram noites de muitos sentimentos, iluminadas pela lua cheia, cercadas pelas montanhas da Chapada dos Veadeiros e embaladas pela cantoria em diversas línguas.

Um dos rituais que participamos foi o hôxwa no ritual de Iniciação das Crianças Krahô, na adolescência onde elas são consideradas prontas para grandes desafios dos guerreiros. Na cerimônia elas passam a noite cantando e realizando pequenas missões como cozinhar um prato típico – que é cozido debaixo da terra – para ser servido a todos os convidados da festa. Elas também recebem pinturas e penas no corpo.

Além de participar de tantas atividades, durante esses dias nosso olhar contemplativo se voltou também para cada detalhe do que é feito à mão por cada etnia e que remete à sua ligação com a natureza. Durante todos os dias da Aldeia era montada feira de artesanato com objetos como instrumentos musicais, cestos, pinturas indígenas em tecidos e muitos acessórios, como colares e enfeites para a cabeça. Cada povo tem sua particularidade e trabalha com materiais específicos que tem a ver com o lugar onde vivem ou com elementos do seu cotidiano.

Kayapós e Kraôs

Entre as etnias que foram convidadas para integrar a Rede Artesol inicialmente foram os povos Krahô e Kayapós que têm trabalhos e formas de organização muito diferentes entre si e muito ricos.

Uma das importantes parcerias que realizamos durante o evento foi com o Instituto Kabu. Com objetivo de valorizar a arte do povo Kayapó Mekrãgnoti, a organização recentemente fechou uma parceria para a criação de uma coleção exclusiva de alpargatas e outros acessórios pintados à mão por artesãs indígenas Kayapó. Os produtos comercializados têm sua venda destinada diretamente aos artesãos e à manutenção de um fundo comunitário que ajuda a proteger uma área de seis milhões de hectares de Floresta Amazônica. Segundo Kokoró Kayapó, o extrativismo e o artesanato são as alternativas que seus povos querem fortalecer para gerar renda digna nas aldeias do Pará.

Quem também foi convidado para integrar a Rede Aresol foi o povo Krahô que vive em Tocantins. Eles dominam técnicas ancestrais de tecelagem e trançados com as quais produzem cestos, bolsas e esteiras e instrumentos musicais e ornamentos ritualísticos. Também são conhecidos pela confecção de pulseiras, colares, gargantilhas, brincos com miçangas naturais (a semente de tiririca) e outros elementos como o fio do buriti, a cabaça, e a casca do cajá. Acesse nosso portal (artesol.org.br). O link está na bio para que você possa conhecer mais sobre a história desses povos. Gostou da série? Nos acompanhe na semana que vem em uma imersão na Floresta Amazônica!

Rede Artesol


Membros relacionados


Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.