Sérgio Matos e o design que transpira brasilidade
Quando estava se formando em design de produtos na Paraíba, o mato-grossense Sérgio Matos propôs um trabalho de conclusão de curso a partir do estudo da estética de objetos artesanais que conheceu nas feiras do Nordeste. Sua proposta de misturar regionalismo e design foi recusada, afinal, naquela época, quanto mais high-tech um produto, melhor. “Nossas fontes eram o design europeu, asiático ou americano. Muita gente de fora já buscava as referências daqui, mas nós não podiamos usar”, conta Matos, lembrando que entre as exceções estavam os vanguardistas Irmãos Campana, mergulhados nas expressões culturais do país. “Eles estavam fazendo um trabalho incrível com muita identidade que os levou ao auge da carreira. E design é assim! Tem que ter personalidade”, avalia Sérgio.
Munido dessa certeza e inspiração, o designer montou seu estúdio em 2010 e começou a desenvolver um trabalho autoral que transpira brasilidade, subverte a função dos objetos e traduz sua relação com diferentes territórios por onde passou. “Desde que me mudei para o Nordeste, eu comecei a percorrer as vendas, feiras e bairros periféricos de Campina Grande e outras cidades da região. Tirava foto dos objetos, conversava com as pessoas que produziam, ouvia suas histórias e colecionava aquelas imagens e memórias que até hoje uso como material de pesquisa”, conta o designer.
Suas peças apresentam um desenho contemporâneo, matérias-primas genuinamente brasileiras, como as diversas fibras naturais da Amazônia, cores do folclore sertanejo e formas tropicais criadas a partir de uma sólida ligação entre tecnologia e produção artesanal. De forma geral, muitos dos seus móveis agregam técnica, arte e cores marcantes.
Com a projeção do seu trabalho, além da produção de mobiliário, Sérgio passou a interagir diretamente com comunidades de artesãos tradicionais, descobrindo e revelando imagens do interior do Brasil, que sugerem uma forte conexão dos objetos artesanais com a história das pessoas e a biodiversidade dos biomas onde são criados. Um dos destaques foi o seu trabalho com os artesãos indígenas e ribeirinhos da Amazônia, através do Projeto Brasil Original, do Sebrae. A proposta era capacitar os grupos em diversos aspectos da atividade, focando desde em melhorias nos produtos e novos métodos de fabricação até a gestão de negócios e ações de mercado. Ao todo, quase 100 artesãos das regiões do Alto Rio Negro, Alto Solimões, Baixo Amazonas, Manaus foram envolvidos na iniciatva.
“Nas comunidades indígenas, o design tem que entrar com muito cuidado e muito respeito porque estamos falando de culturas ancestrais e não podemos interferir de qualquer forma, são expressões riquíssimas de sentido, de valor e de beleza”, ressalta Sérgio.
Apesar da precaução, o designer defende que que a aproximação entre design e artesanato de raíz ajudou a reconectar alguns povos nativos às suas próprias tradições, através da estética e da identidade. Segundo ele, muitos indígenas que vivem nas cidades evitam falar sobre suas etnias e sobre seu idioma nativo. Dizem que já não são indíos mais porque deixaram suas aldeias. De acordo com Sérgio, esse tipo de postura reflete o preconceito e a desvalorizção das culturas tradicionais por parte de uma sociedade que os trata de forma hostil. Por isso, colocar holofotes sobre a identidade de cada etnia, suas tramas, suas matérias-primas, seus simbolos é uma forma de revelar suas riquezas e particularidades.
Vale lelmbrar que, ao todo, o Brasil possui mais de 230 povos diversos entre si, cada um com sua forma de ver no mundo, com sua arte, com um enorme conhecimento sobre o meio ambiente, com uma variedade linguística fascinante. Nas tribos que perderam seus vínculos com sua cultura, em geral, a produção dos objetos artesanais é um dos poucos links com a ancestralidade que se mantém ativo.
Por isso, as peças desenhadas pelo estúdio de Sérgio na Amazônia combinam o design com o feito à mão, para evidenciar a essência de cada cultura. “Gosto de dizer que sou co-autor. O projeto é voltado às comunidades indígenas e a ideia é não mudar a característica de fabricação artesanal. É precisoresguardar as referências de pertencimento, a imersão nos saberes e fazeres ancestrais e a valorização da matéria-prima do entorno.O que fazemos, então, é manter a técnica, mas criar um produto contemporâneo. As tramas são deles, eu apenas desenho”, conta.
Ainda segundo Sérgio, quando o foco é ampliar o mercado para os objetos artesanais, muitas vezes, a solução é ressignificar os usos. Por isso, ele retira os elementos de seu contexto natural e dá novos valores a objetos cotidianos, reinventando seus usos. È o caso do cesto de arumã criado pelo indígena Zé Garcia, de São Gabriel da Cachoeira, que virou luminária, por exemplo, sob o olhar apurado do designer e ganhou o mercado nacional.
Além de olhar para o artesanal e traduzir para algo contemporâneo, Sérgio também gosta de documentar os artesãos como personagens para ensaios autênticos. “Gosto de fotografá-los para instigar a curiosidade e fazer produções que remetam ao seu trabalho, mas não de forma clichê. Não vou podir um índio pra colocar um cocar pra eu fazer foto se ele não usa cocar no seu dia a dia, só porque o branco espera que ele use”, conta. Segundo o designer, as imagens produzidas fazem parte de um trabalho de valorização das identidades locais que ajuda os indígenas a melhorarem sua auto-estima e a reconhecerem sua própria identidade e suas referências sagradas.
“Na Amazônia, em cada objeto reside a ancestralidade e os vínculos místicos da “Gente Peixe”. Antepassados que segundo relatos orais das etnias de fala tukano e da tribo Tariana, deixaram o Lago de Leite – ventre materno de todos os povos – e seguiram o curso dos rios Amazonas e Negro até ancorar na região da nova humanidade”, relata Sérgio em seu em um texto sobre as tribos da região de Barcelos.
“Já os indígenas Tapuia – que margeiam a região do Alto Rio Negro, por exemplo, creditam sua origem a um presente de Tupã, entidade sagrada simbolizada pelo trovão. A narrativa tribal resistente ao tempo explica que no alto da copa as folhas centrais de matiz verde esmeralda compõem uma coroa que adorna e protege a floresta”.
Mergulhando nessas referências, Sérgio lançou – através do Sebrae – o catálogo “Deuses indígenas” que retrata povos nativos como deuses e deusas misturando moda e características das identidades culturais locais. Nas fotos, são exibidosartesanatos produzidos por comunidades em São Gabriel da Cachoeira,Tefé, Barcelos, Benjamin Constant e Manaus.
Para Sérgio, artesanato, tradição e espiritualidade estão especialmente conectados nessa parte do Brasil. “Na imersão desse fazer artesanal, no convívio com pessoas únicas, na troca de experiências e na sutileza das infinitas histórias contadas pelos artesãos, alargo minha percepção e entendimento a despeito da espiritualidade e convicções”, declara Sérgio.