
“Volvimos a ser semillas”
Entre sementes e tramas, o encontro em Amaicha del Valle celebrou a força coletiva das mulheres tecedeiras e a delicadeza da vida entrelaçada ao território.

Helena Kussik
17 de setembro de 2025
“Voltamos a ser sementes” é a afirmação que escutei de uma artesã durante o período que estive em Amaicha del Valle para o 15º Encuentro de Tejedoras e a Asemblea Mismear entre 26 de julho e 01 de agosto. Semente que carrega o gérmen da vida, que guarda, defende, nutre; que é origem e continuidade ao mesmo tempo. A escolha de nomear a união de tecedeiras, artistas e ativistas de “Textiles Semillas” é carregada não só de significados simbólicos, mas de práticas arraigadas à terra, a seus cuidados e criações. A Unión Textiles Semillas UTS é um movimento que envolve mais de duzentas mulheres do noroeste argentino, constituído em 2023 como iniciativa de articular organizações de mulheres camponesas e indígenas de uma mesma região com pesquisadoras, professoras, designers e artistas. “Trata-se de um movimento de intercâmbio e cuidado mútuo, em constante crescimento.”

Voltando à frase que me marcou e ressoou durante todo o encontro: ela disse “voltamos”. Só se retorna a algo já conhecido, que nos pertence. A fala evocava justamente a importância da união em um contexto onde povos indígenas e campesinos sofreram e sofrem violências que tentam apagar modos de vida, saberes e vínculos com a terra. Nesse sentido, “voltar a ser sementes” significa recuperar práticas de cultivo, criação e transmissão de conhecimentos como formas de resistência e de reconexão com aquilo que lhes é próprio. É nesse retorno, pela força da coletividade e da troca, que germina a beleza da vida em suas tramas.
Ainda inspirada por essas metáforas, trago comigo uma imagem bem brasileira: a Muvuca. No campo da restauração ambiental, ela é entendida como uma mistura de sementes de diferentes ciclos de vida e funções, combinadas de forma estratégica para que, juntas, regenerem áreas degradadas. Mas a palavra carrega também o sentido popular de aglomeração, de encontro, de diversidade que se soma. Assim como na Muvuca, é na junção de saberes, experiências e forças coletivas que se cria potência. “Crescemos porque nos juntamos.” 1

Tecer delicadeza

“A ação de tecer está muito ligada à delicadeza, pois constrói algo ao mesmo tempo muito frágil e muito estável, que tem a capacidade de permanecer como objeto e como memória.” 2
A produção têxtil carrega em sua prática a criação da vida entrelaçada à coletividade; fiar e tecer são muito mais que gestos de uma produção material, pois a partir dos nossos mais íntimos afetos podemos resgatar o aconchego dos tecidos da nossa memória. De casa, de nossos campos, contamos o mundo e lançamos uma linha que nos guia para o retorno.
Foram as linhas da Randa que guiaram a artista e pesquisadora argentina Alejandra Mizrahi ao litoral alagoano e a conectaram com Sonia Lucena, Patrimônio Vivo do estado, mestra da Singeleza. Randa e Singeleza são rendas irmãs que, vindas da Península Ibérica, aportaram na América do Sul e em cada território desenvolveram características particulares relacionadas à geografia e culturas locais.
Soninha foi uma das colaboradoras do nosso livro Têxteis do Brasil: rendas e bordados, lançado este ano pela Artesol, e foi a ponte para nosso encontro no noroeste argentino. Ale foi a primeira pessoa que conheci da UTS, movimento idealizado por ela e pela curadora Andrei Fernández, que cresceu dentro do Programa 99 Questions, curado por Michael Dieminger a partir do Humboldt Forum, em Berlim.

Quando me propus a realizar a viagem para participar da “ASAMBLEA MISMEAR. UNA POÉTICA DEL GIRO EXPANDIDO” não sabia exatamente o que iria encontrar. Recém estava me aproximando e conhecendo a UTS, que já de longe me era inspiradora. Além de acompanhar toda a programação recebi o convite para apresentar o livro durante a assembleia – um regalo!
Convidei minha amiga e fotógrafa Kity Ramos, carreguei a mala de livros e casacos e parti para a paisagem que há anos sonhava conhecer. Allá, ativei mi portuñol, que segue refletindo na escolha pouco usual de algumas palavras neste texto, palavras que carregam a origem comum de nossas línguas.

A assembleia, promovida pela UTS, foi acolhida em Amaicha del Valle, Quilmes e Lampacito no período entre o Encuentro Anual de Tejedoras e as celebrações da Pacha Mama – uma data muito especial para estar nos Valles Calchaquíes. O encontro tecido por tantas pessoas especiais foi pensado do início ao fim como fortalecimento do coletivo, da união. Nos hospedamos, nos deslocamos, nos alimentamos e bailamos juntas. Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o quanto as atividades práticas propostas refletiam a elaboração conceitual e teórica do movimento – e vice-versa.
Segundo as organizadoras, a inspiração para o evento vem da dinâmica das feiras de sementes crioulas, realizadas como estratégia de conservação e cuidado. Essa cultura é compartilhada e também muito presente nos interiores do Brasil, onde a produção rural se conecta intimamente à produção artesanal. Ambas “envolvem gestos imperceptíveis à primeira vista, mas que fazem parte do modo de sentipensar o mundo dos diferentes grupos.”3
Os “três estados de uma presença” estruturaram o encontro: “contemplar, comercializar e transmitir”, manifestos de três formas simultâneas – exposição, feira e ateliê. Durante o Encuentro de Tejedoras, artesãs da Argentina, Chile, Bolívia e Brasil expuseram suas peças na feira para comercialização, mas também em uma exposição móvel e em um desfile de modas. Além disso, realizaram ateliês de repasse das técnicas e ativações artísticas coletivas.

Na assembléia tivemos experiências de troca e aprendizado muito ricas, com rodas de conversas e apresentações seguindo três eixos: “materialidades, tecnologias e transmissão de saberes”, “instituições possíveis” e “performatividade tecida”. A apresentação do nosso Têxteis ocorreu no fechamento do primeiro dia, na comunidade de Quilmes, abraçado pelas montanhas e banhado pelo pôr do sol.
Tecer a partir de matéria tão fina que é a vida exige experiência e esperança e foi isso que compartimos. Em uma Muvuca bastante particular, sinto que no encontro tivemos essa felicidade, a de nos misturarmos – com origens e histórias tão distintas – para germinarmos uma ideia comum.
- Título do livro lançado pela UTS durante o evento. Disponível em textilessemillas.com ↩︎
- MIZRAHI, Alejandra; FERNÁNDEZ, Andrei. El empiecito. In: UNIÃO TEXTILES SEMILLAS. Crecemos porque nos juntamos. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Metaninfas Ediciones, 2024. p. 22-32. ↩︎
- MIZRAHI, Alejandra; FERNÁNDEZ, Andrei. El empiecito. In: UNIÃO TEXTILES SEMILLAS. Crecemos porque nos juntamos. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Metaninfas Ediciones, 2024. p. 22-32. ↩︎

Helena Kussik
Designer e antropóloga, pesquisadora e gestora de projetos no terceiro setor, com foco na valorização dos saberes tradicionais. Idealizadora da Ómana, atua no fortalecimento dos têxteis brasileiros e suas mestras. Desde 2017 é colaboradora da Artesol, onde coordena os projetos Rede Artesol – Artesanato do Brasil e Têxteis do Brasil. Em 2025, lançou seu primeiro livro, “Têxteis do Brasil: Rendas e Bordados”, fruto de uma extensa pesquisa sobre os ofícios tradicionais brasileiros.