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Tu me ensina a fazer renda?

Confira o relato sobre os bastidores do projeto Têxteis do Brasil, iniciativa da Artesol de documentação das técnicas têxteis de coletivos de artesãs de diferentes partes do país a partir de pesquisas profundas em campo. O objetivo é salvaguardar os conhecimentos relacionados ao processo de criação das peças e estimular a sociedade a redescobrir e valorizar estes trabalhos tão valiosos para a nossa identidade cultural

Helena Kussik


Já tem um tempo que pesquiso e escrevo sobre rendas e bordados brasileiros, inclusive aqui para o blog. Agora quem nos acompanha nas redes sociais deve ter visto os diários de viagem do imenso projeto que estamos desenvolvendo: Têxteis do Brasil.

Uma iniciativa Artesol, patrocinada pela Rumo Logística, que visa o registro e a salvaguarda de técnicas tradicionais com a publicação de uma Enciclopédia Ilustrada inédita!

Parte da pesquisa foi dedicada ao desenho do trajeto, que contou com a participação de Associações, Cooperativas, Mestras e Artesãs integrantes da Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro, a Rede Artesol.

Porém, a vivência em campo com as mestras, o aprendizado das técnicas e o afeto de seus ambientes foram essenciais para constituir as bases do conteúdo que será publicado. Uma construção coletiva que transborda o registro técnico material e revela as rendas e bordados em profundidade.

Foram três meses de viagem, mais de 10.000 quilômetros rodados em 5 estados da região Nordeste, para registrar em detalhes 8 técnicas, a maioria reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial.

São elas: Renda Irlandesa, em parceria com a ASDEREN (Associação para o Desenvolvimento de Renda de Divina Pastora); Renda Singeleza com a ARTECER (Associação das Rendeiras de Singeleza e Bordados de Paripueira) e Sônia Lucena; Bordado Filé com a AMUR (Associação das Mulheres Rendeiras de Marechal Deodoro); COOPERARTEBAN (Cooperativa dos Artesãos de Barra Nova); INBORDAL (Instituto do Bordado Filé); Bordado Boa Noite com Cooperativa Art Ilha; Bordado Redendê com Companhia de Bordados de Entremontes; Renda Renascença com a Conarenda; Bordado Labirinto com mestras de Ingá e Serra Rajada; e Renda de Bilros com a ARBISC (Associação das Rendeiras de Bilro da Santana do Cariri), Olê Rendeiras e mestras Raimunda Lucia Lopes e Ana Maria da Silva e sua família.

Técnicas como Patrimônio Imaterial

Os locais que escolhemos para realizar a pesquisa são reconhecidos por sua produção artesanal. Muitos municípios, inclusive, ostentam títulos como: Capital da Renda ou Terra do Bordado. Além disso, 6 das 8 técnicas já possuem algum tipo de registro de Patrimônio Imaterial, seja a nível municipal, estadual ou nacional.

Seguimos por esse rumo porque em lugares onde a produção é concentrada e intensa os ambientes são permeados pela prática, que de tão imiscuída ao cotidiano, o constitui.

Segundo definição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Patrimônio Imaterial é “constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.” Nesse sentido, há décadas ou séculos, essas técnicas de origem européia espraiam-se por nossos territórios, fazendo morada. São trabalhadas criativamente há gerações de artesãs, que em cada ponto registram um tanto de suas histórias, de nossa história.

Foi com isso em mente que seguimos pelos 30 municípios e povoados visitados, guiadas pelas mãos e sonhos das mestras que dominam seus ofícios há 30, 40, 70 anos! Eu, junto da ilustradora Camila do Rosário e da fotógrafa Nathalia Abdalla, buscamos registrar os modos e meios de se fazer as rendas e bordados, com olhos e ouvidos bem atentos, mas não só!

Gestar no corpo o gesto

Considerando que grande parte das técnicas têm pouco ou nenhum registro formal de seus modos de fazer, conviver com as mestras, aprender observando seus gestos, absorvendo seus ensinamentos de poucas palavras, foi parte essencial da pesquisa. Por isso, para além do que olhos, ouvidos, câmeras e gravadores eram capazes de captar, julgamos necessário empregar nosso próprio aprendizado como método, afinal, estamos preparando uma publicação que visa registrar e fomentar o repasse dessas artes.

Renda irlandesa do grupo Asdern, de Divina Pastora (SE). Foto: Nathália Abdalla

É no corpo que os gestos aprendidos através da observação ganham forma e produzem.Essa abordagem metodológica vai de encontro à forma como as artesãs relatam, elas próprias, terem aprendido a rendar ou bordar. Muitas, quando questionadas sobre como aprenderam, contaram-me histórias semelhantes; afirmaram que de tanto observarem as mais velhas trabalhando, a primeira vez que pegaram a agulha, os pontos saíram como se estivessem sendo ensaiados há tempos.

“A gente aprende de tanto olhar, de tanto curiá”.

Eu, particularmente, gosto muito da expressão curiá; ela registra o olhar atento, brilhante, curioso, e um tanto infantil, que podemos cultivar frente ao mundo.

Essa curiosidade é fomentada na interação em espaços de sociabilidade. Seja por desejo, necessidade, ou os dois juntos.

Ainda que o repasse geracional – de mãe para filha – esteja cada vez mais raro, mesmo nesses ambientes onde tais práticas se apresentam de forma expressiva, vemos surgir ações de repasse propostas no coração dos coletivos, associações e cooperativas de artesãs.

Dois exemplos que gostaria de compartilhar, que somam-se aos nossos esforços e iluminam os nossos caminhos, são da Companhia de Bordados de Entremontes e do projeto Labirintos do Agreste Paraibano.

Desde 2017 funciona na Casa dos Bordados de Entremontes, no município de Piranhas em Alagoas, a escolinha de bordado para as meninas de 5 a 14 anos da comunidade. Para funcionamento em dois turnos com aula semanal, a associação conta com apoio do Instituto Campana e as aulas para as mais de 25 alunas são ministradas pelas bordadeiras Edna Bezerra e Jéssica Bezerra Fernandes, mãe e filha. Elas contam que a maioria das alunas frequenta o curso desde seu início, pois as aulas, que ocorrem no contraturno escolar, são também ponto de encontro de amigas que se divertem bordando, ouvindo e contando histórias.

Bordadeiras da AMUR, que atua com o bordado filé em Marechal Deodoro (AL). Foto: Nathália Abdalla

Outra ação, esta mais recente, é a proposta formativa do projeto Labirintos do Agreste Paraibano, que fomenta o repasse, a estruturação de grupos produtivos e a comercialização da produção local. Conta com apoio da Morada, coordenada pela designer e pesquisadora Lucyana Azevedo, Programa do Artesanato Paraibano e Sebrae Paraíba. Dentro das ações formativas estão sendo ministradas oficinas pelas mestras Zezé Xavier e Cleide Matias para mais de 30 artesãs dos quilombos Pedra D’Água e Grilo.

Com tudo isso, nossa intenção com essa pesquisa e publicação é oferecer subsídios materiais para facilitar esses processos de repasse do conhecimento tanto nas comunidades quanto mundo afora. Além disso, esperamos que as histórias de cada um dos coletivos, mestras e das próprias técnicas sirvam de inspiração para novas gerações seguirem curiando, aprendendo e ensinando.

Rede Artesol


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Idealizadora do Projeto Têxteis do Brasil, Helena Kussik é mestre em Antropologia e atua como designer, pesquisadora e gestora de projetos na área de cultura, com enfoque no universo do artesanato e da arte popular brasileira