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Um olhar para a arte que nasce da intuição

Depois de um apagão cultural devido à pandemia que marcou o ano de 2020, aos poucos os museus reacendem suas luzes e começam a agendar pequenas mostras. Para quem está com saudades da vida cultura pré-quarentena, mas ainda não se sente confortável para uma exposição ao vivo, te convidamos a mergulhar nessa resenha do sociólogo Artur Lins sobre a mostra “Que Mestre é Esse”. A exposição aconteceu no CRAB do Rio de Janeiro no começo deste ano e, infelizmente, teve que ser encerrada antes do previsto. Agora você pode conhecer mais sobre alguns dos 190 artistas que tiveram suas obras…

Artur André Lins


Ao entrar na exposição “Que mestre é esse?”, no Centro de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB) que fica no centro histórico do Rio de Janeiro, o visitante era tomado por vibrações sonoras de Chico Science & Nação Zumbi e bombardeado por uma sequência de imagens de mestres artesãos brasileiros. Sob efeito do som elétrico de guitarras grunhindo com o batuque frenético dos tambores de maracatu, ainda na entrada éramos interpelados por uma inusitada projeção virtual de duas figuras que se esgrimam em um diálogo:

Gilberto Freyre diz:

“Querer museus com panelas de barro, facas de ponta, cachimbos de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica e não apenas com relíquias de heróis de guerra.”

Na outra ponta, Mário de Andrade responde:

“Essa única espécie de realidade que persiste através de todas as teorias estéticas e que é a própria razão primeira de arte, a alma coletiva do povo.”

A deferência feita aos intelectuais modernistas nos remete à história de um “olhar” voltado às artes e ofícios populares. Ao longo do tempo, esse “olhar” revelou nomes próprios e autorais, estilos locais de tradições coletivas e objetos ícones estudados, catalogados e colecionados.

Segundo o curador Leonel Kaz: “Nos demais países latino-americanos e grande parte dos países do mundo, a arte popular é mais folclórica, anônima. No caso do Brasil, o artista popular é singular, ele tem o nome dele agregado à obra e à invenção. Essa é uma característica muito forte da arte popular brasileira”.

Nessa exposição, a proposta era oferecer às artes populares o mesmo posto de que desfruta as belas-artes, com apelo à experiência estética a partir da singularidade de cada obra. Por isso, o curador se justifica:

“Sem data, sem território, sem nada. Nós partimos do sentido estético. Quem quiser faça a sua camada. A exposição não pode ser um ordenamento. Não queremos uma forma muito rigorosamente acadêmica. O percurso museológico tem que ser rico, tem que ter sístoles e diástoles, tem que ter muita luz ou pouca luz, tem que ter uma coisa arrebatadora e uma coisa mais amena, eu acho que esse tipo de percepção é importantepara o visitante”, diz Leonel Kaz.

Uma narrativa construída pelas subjetividades

Já a primeira sala da mostra prestava homenagem a um grande nome de Juazeiro do Norte, Nino do Crato (1920-2002). Fruto do Cariri, celeiro de incontáveis artistas populares, a obra de Nino revela um estilo de criação inconfundível. Toros de madeira – imburana de cambão, aroeira e timbaúba – esculpidos em figuras tridimensionais, baixo-relevo ou desenhadas com uma liberdade de percepção das formas, do movimento e das cores que desafia os padrões acadêmicos. 

No monobloco de madeira, observamos pássaros, bois, macacos, peixes, personagens humanos e folclóricas, cenas de rituais e demais elementos, dispostos em uma narrativa de múltiplos planos, a partir da sugestão bruta da matéria-prima, com as suas curvas e inclinações naturais. Olhamos para volumes de cores vibrantes, primárias e secundárias, que tendem a receber o contraste de pinceladas sobrepostas com tons de marrom, preto e branco, provocando o efeito de desgaste acompanhado da emoção de assombro. 
Através de Nino aprendemos que a virtude da criação corresponde a uma realidade distinta, fantasiada e suprassensível.

O artista imprime o seu imaginário de maneira lúdica e repleto de graça com essas criaturas, por vezes quiméricas, indefiníveis e ilógicas que parecem habitar mundos à parte.

Passando adiante, em um corredor estreito tomado por projeções imagéticas, o visitante era afetado pelo som da rabeca de Mestre Salustiano (1945-2008), pernambucano da cidade de Aliança – mestre-artesão luthier (que produz instrumentos de corda). A sala introduzia a temática dos ofícios (carpinteiros, ferreiros, oleiros e etc.), um importante elemento da manualidade dos artistas populares. Manoel Salustiano é exemplo de como um ofício pode ser completo, construía as rabecas e punha-se a tocá-las. 

Ato contínuo: a sensação de monumentalidade. Entrávamos em uma floresta feita à mão, sonorizada pelo delírio percussivo de Naná Vasconcelos. Saltava aos olhos a verticalidade de objetos totêmicos. Logo na entrada, fui recebido por São Jorge e São Francisco, efusivamente coloridos, assinados por Antônio de Dedé. Caminhando pela floresta, um conjunto de onças de Arthur Pereira surpreendia pelo movimento expansivo. Na madeira nua, imagens de Exu adornadas por falos e cobras aludem à inspiração religiosa de Chico Tabibuia. Entre cheios e vazios, formas circulares erguem a genealogia metafísica das Rodas Vivas de Geraldo Teles de Oliveira.

Na tradição do último artista, temos uma impressionante escultura de Jadir João Egídio, com figuras verticais ladeadas em superfície áspera, que expressa a gravidade de faces humanas em nítido sofrimento. Ao fundo, três grandes ícones, Mestre Guarany, Manoel Graciano e Véio: o primeiro nos recorda a clássica imaginária apotropaica das carrancas do Rio São Francisco; o segundo, tendo feito escola em Juazeiro do Norte, exibe, por uma briga de cães, os seus típicos animais ferozes de enormes bocas que rangem audíveis; o terceiro, ainda vivo e residente no sertão sergipano, mistura de figuração com abstração, poético em cada detalhe e curiosamente satírico, a exemplo do personagem de nariz alongado e gravata enrolada no pescoço.

Deixando as penumbras da floresta, entrei em um reluzente salão e me dei com uma enorme vitrina, em diagonal, disposta no centro. Nas paredes laterais, headfones convidavam os visitantes à audição da música popular brasileira, de Tom Jobim, passando por Luiz Gonzaga até Racionais MC’s, entre outros. Quase uma centena de peças, cobrindo o percurso criativo de um século inteiro, eram testemunhas da plasticidade exuberante da arte popular brasileira. Destaque para a cerâmica: Dona Izabel, Noemisa Batista e Ulisses Pereira encantam com a tradição do Vale do Jequitinhonha; Mestre Vitalino, Mestre Galdino e Manuel Eudócio recordam a força e pioneirismo do Alto do Moura; Dona Irinéia, Sil da Capela e Ana das Carrancas cravam a presença das mãos femininas no emaranhado desse vasto e rico universo.

Seguindo em frente, entramos em uma pequena sala que rende tributo ao simbólico sagrado do baiano Mestre Didi (1917-2013). A partir da nervura da palmeira, palha da costa, couro pintado, búzios e contas coloridas, inspirado nos objetos litúrgicos e no imaginário sincrético dos cultos afro-brasileiros, especialmente o candomblé, formas sinuosas nos fazem deslizar o olhar entre totens mitopoéticos, serpentes, espíritos arbóreos e um grande pássaro ancestral, intitulado Eye Nla Agba.

Virando à esquerda, levei um susto! Despencavam do teto suportes audiovisuais tentaculares, dispostos em frente a cada uma das 16 cadeiras – tronos entalhados na madeira – que compõem a instalação com a seguinte advertência: “Essas cadeiras são obras de arte. Favor sentar com cuidado”. Na tradição do mobiliário rústico de Mestre Fernando Rodrigues, a sala celebrava a existência do povoado alagoano Ilha do Ferro, situado à beira do Rio São Francisco, um pequeno lugarejo de farta criatividade. Nos visores flutuantes, o visitante, ao experimentar o assento das obras, assistia a seis depoimentos de consagrados mestres artesãos. A instalação nos relembrava que, em matéria de arte, a forma excede a função, através de uma excelente amostragem do vigor inventivo de um design popular que brota do mesmo chão de terra batida do sertão

A penúltima sala era dedicada à pintura. Obras indiscutíveis de meados do século XX colocavam em foco a origem da arte naif brasileira – prefere-se adjetivos como autodidata ou espontânea –, com a presença de Cardosinho, Heitor dos Prazeres, Paulo Pedro Leal e Júlio Martins da Silva. Ao lado desses quatro autores, víamos uma tela de Antônio Poteiro, espécie de releitura tropical do quadro de Manet – Déjeneur sur l’Herbe. Ainda, curiosamente situada nessa sala, estava um conjunto de rostos policromados, modelados em terracota, feitos pelas mãos de Ciça – Cícera Fonseca da Silva. No suporte do barro, o destaque da curadoria era dado à qualidade da pintura. Ao final, um suspiro. Ambiente ameno e lúdico. Coroando a densa exposição, ao som de Luiz Gonzaga, podíamos transitar por uma instalação repleta de objetos do Mestre Cunha, pequenos aviões que se misturavam com pássaros, carrinhos futuristas e antropomórficos, suspensos em um cubículo azul. São peças surreais que lembram brinquedos de criança.

Quando nasce um artista?

O artista popular, tal qual qualquer outro artista, não nasce pronto. Forma-se. No entanto, são dadas as condições de sua formação. Presenciamos a criatividade feita pelo que está à mão, disponível nos arredores. Existe uma qualidade de improviso, com o menor dispêndio possível se quer atingir a maior expressividade. Trata-se de um exercício sensível de bricolagem. A escassez de recursos contrasta com a força plástica abundante.

Essa beleza peculiar desafia a presunção do bem-acabado e questiona a nobreza dos materiais eruditos. Formas angulares, bordos irregulares, traços brutos, soluções volumétricas autênticas, expressão do imaginário simbólico…

A arte é sempre resultado de uma demanda existencial, mesmo se meio de sobrevivência. Começa, por assim dizer, quando a criança pobre faz o próprio brinquedo e se aperfeiçoa, como vimos, pela manualidade dos ofícios. O encantamento dessas criações artísticas autóctones oferece alimento aos nossos sonhos presentes e futuros, pequena memória de um Brasil pelo qual vale a pena lutar.

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Artur André Lins, sociólogo pela UnB, mestrando em sociologia na Unicamp. Atualmente, dedica-se a um projeto de pesquisa sobre o mundo da arte popular e do artesanato brasileiro, em que investiga a conexão entre a cultura popular, o território onde ela está inserida e o mercado contemporâneo.