Yankatu e a coleção Alma-Raiz, uma história muito além do objeto
A autora Maria Fernanda Paes Barro é designer, fundadora da marca Yankatu, que atua com “design com alma brasileira”. No texto, faz um relato em primeira pessoa sobre o afetivo processo de criação da coleção Alma-Raiz junto às artesãs da Reserva Extrativista do Arapiuns. Herdeiras de conhecimentos indígenas ancestrais, elas coletam, trançam e tingem naturalmente a palha de tucumã no coração da Amazônia Paraense. Desse olhar novo para antigos saberes nascem peças autorais ricas em histórias e beleza.
Na crença do povo Kamayurá, o ser humano nasce com três almas. A primeira ele herda do pai, a segunda da mãe e a terceira, que é a sua essência, é Yankatu. Yankatu é a minha essência. Através dela me desnudo e apresento o que há de melhor em mim. Yankatu é a essência dos artesãos que conheço, que amam o que fazem e mantém vivas as tradições. Yankatu é a essência de todos que colaboram de alguma forma para que ela siga em frente. Muito antes da Yankatu ganhar este nome eu já sabia que meu design teria alma, queria através dele apresentar os artesãos e do artesanato brasileiro. Assim nasceu o pequeno livro que acompanha as peças, para contar essas histórias e possibilitar que você as torne suas também. A cada projeto mergulho em uma região, seus ofícios e as vidas das pessoas que os fazem. Uma pesquisa regida pelo olhar, feita com sensibilidade, respeitando o ritmo ditado pelo tempo. Há tanto a ser visto e falado!
Eu acredito que o design e a arte são uma das principais formas de valorizar e eternizar nossos conhecimentos ancestrais e a natureza ao seu redor. Através da Yankatu, exponho não apenas meu trabalho, trago comigo o sonho de muitos e instigo novos sonhos em outros tantos. A parte palpável desse trabalho são as obras que entrelaçam o meu olhar ao das vidas que compartilham comigo seus momentos. A outra parte, imensurável, está em contínuo desenvolvimento e sem data para terminar. Na base de tudo estão as relações que estabeleço com os artesãos, pois são elas que irão guiar as palavras e os passos em direção a algo bem maior que o objeto em si.
O mergulho na ancestralidade amazônica
Cada viagem é uma nova descoberta, mas a transparência, a admiração sincera e o respeito não mudam nunca. Chego sempre como um caderno em branco, sem entendimentos prévios sobre o assunto. Quero ouvir de quem vive daquilo, quem nasceu ali naquela terra e a viveu até então. Sei que tenho muito a aprender e assim os desperto para o quanto eles têm a me ensinar. As páginas do caderno vão sendo preenchidas aos poucos, quando histórias se unem a desenhos e nossas mãos juntas traçam novos horizontes. Considero essa construção uma soma e nunca uma subtração.
As tradições são as raízes que estruturam nosso futuro e é essencial que se perpetuem. É a partir delas que novos olhares surgem, como se as reinventássemos a todo instante para permitirmos que ela se mantenha viva. A coleção ALMA-RAIZ foi desenvolvida junto à comunidade de Urucureá, acessada a partir de algumas horas de barco a partir de Santarém, no Pará. Trata-se de uma comunidade ribeirinha às margens do rio Arapiuns. Ela nasceu desse meu mergulho cada vez mais profundo na identidade brasileira. É uma coleção que rememora o passado e ao mesmo tempo reaviva o presente, nos mostrando o quanto nós, brasileiros, somos plurais, e que a liberdade de transitarmos pelos diferentes universos da nossa cultura é um grande privilégio.
Lá eu conheci, conversei, aprendi, ouvi e senti pessoas e histórias, assisti e participei de colheitas de palha, tingimentos naturais e tessituras sentada embaixo da sombra da mangueira junto com as artesãs que integram a cooperativaTuriarte(membro da Rede Artesol). Testemunhei sorrisos e desabafos, toquei com minhas próprias mãos as matérias-primas e as mãos das pessoas que as transformam em arte. Cultivei relações e fiz amigos que seguirão comigo pela vida.
Urucureá uma pequena comunidade à beira de um grande rio amazônico, sem estrada, wifi e com raro sinal de telefonia é sonho e realidade, é o Brasil puro e duro, é bela na sua simplicidade e autenticidade. É essência. Lá artesãos, na sua grande maioria mulheres, tecem a palha de tucumã, uma palmeira típica da Floresta Amazônica. A partir de um processo de tingimento natural executado com folhas, raízes e frutas como caapiranga, margarataia, crajirú, jenipapo e urucum, essas palhas ganham cores e refletem a natureza ao seu redor em cestos, mandalas e outros objetos de decoração.
O processo de criação e os próprios exibidos nas peças deixam clara a importância da ancestralidade indígena que atravessa gerações. O trançado é resistente e lindo. As tonalidades obtidas com o tingimento natural são várias e vibram, como se quisessem nos falar algo. Os artesãos obstinados não desistem de continuar escrevendo suas histórias através da palha. Somar tudo isso ao mobiliário foi apenas uma questão de olhar. Um novo olhar. Um olhar sem preconceitos, um olhar livre e leve, um olhar que se permite de alguém que acredita na importância de salvaguardar tudo isso.
Artesanato é cultura. Ele nasce carregado de significados, de porquês. Ele reflete parte da nossa história. Ele vive em sintonia com a natureza ao seu redor. Ele retrata sentimentos e emoções. Através de um olhar cuidadoso, repleto de respeito e admiração, a cada dia procuro entender um pouco mais sobre esse universo fascinante e os artistas incríveis que o traduzem através das mãos. A coleção ALMA-RAIZ nasceu desse meu mergulho cada vez mais profundo na identidade brasileira. ALMA-RAIZ é uma coleção que rememora o passado ao mesmo tempo que reaviva o presente, que nos mostra o quanto nós, brasileiros, somos plurais, e que transitar pelos diferentes universos da nossa cultura é um grande privilégio. Ao longo de um ano e quatro imersões na comunidade resgatei sentimentos, incentivei a experimentação, propus a liberdade criativa sem medo do erro, inseri novos materiais como a madeira e o fio de cobre, mostrei o valor e a importância do artesanato brasileiro. Acredito que é essa troca de ideias a grande riqueza que deixo com eles. Um novo olhar para o que já existe, reavivando os motivos pelos quais trança-se a palha e tinge-se o mundo com as cores que refletem um pouco da história do Brasil.
Os objetos nascem dessa interação entre artesanato e desitgn são peças de imobiliário que misturam madeira e palha: cadeiras, bancos e mesas feitos em madeira Cabreúva parda e palha de tucumã, transbordando as cores da floresta Amazônica. A coelção está sendo lançada essa semana durante a Feira Mercado Arte e Design (MADE) que acontece até o dia 25/08 às 19h.