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You can touch, it’s art: transpondo fronteiras e códigos do mundo das artes visuais

Há indícios de que existe uma revolução em curso no mundo das artes, onde as práticas curatoriais não só têm rejeitado o conceito de arte intocável, como valorizado, cada vez mais, a pluralidade de narrativas e linguagens, colocando no centro do debate produções antes marginalizadas para romper com uma visão eurocêntrica de mundo. Neste contexto, o Arte dos Mestres se soma a um movimento importante para amplificar as vozes de artistas ditos populares, que nos ajudam a entender as diferentes histórias do Brasil e da arte.

Camila Fróis


“Don’t touch, it’s art!” O bordão de Narcisa Tamborindeguy, que ficou famoso em todo o Brasil, nasceu durante a cobertura da Artrio 2014, quando a socialite caminhava pela mostra de uma galeria de Londres e tocava (literalmente) as obras expostas, deixando os curadores desesperados enquanto repetia os alertas que recebia:- Don’t touch… It’s art!

A frase estampou camisetas, virou música, batizou projetos, ilustrou obras de arte de exposições importantes e ecoa nas redes sociais há uma década. A grande repercussão do deboche de Narcisa talvez se explique por um contexto cultural em que o conceito de arte e o seu “modo de usar” tem sido questionado por diferentes movimentos curatoriais no Brasil e no mundo. Seja na academia, ou no circuito artístico comercial, são muitos os pensadores que colocam em questão o caráter intocável (em um sentido mais amplo do termo) de obras de arte europeias, que funcionariam como ícones de adoração distanciada.

Segundo as teorias da História da Arte, esse paradigma nasceu ainda no período do Renascimento, quando houve uma mudança radical de perspectiva no mundo das artes, pois pintores e escultores, reivindicavam para si o status de intelectuais (e não apenas de artistas manuais), fazendo uma diferenciação entre arte e ofício. Nesse momento, aobra de arte se torna, segundo a definição da pintura formulada por Leonardo, “coisa mental”. Essa arte é promovida, então, de objeto puramente material ou físico a um objeto conceitual, ou seja, que carrega um discurso, uma ideia, uma visão de mundo, algo, portanto, intangível.

Essa perspectiva repercute até os dias de hoje na conceituação do objeto de arte como uma produção que se distanciaria de outras criações manuais, como, por exemplo, o artesanato, que segue relegado, em alguns casos, à condição de um artefato que é resultado de um trabalho mecânico/manual (como se também não carregasse uma narrativa sobre o mundo). Ou da arte popular, que, pelo fato de ser produzida por artistas que não frequentaram escolas de arte, não seria fruto de um trabalho intelectual e, sim, manual (como se o exercício do pensamento crítico fosse um privilégio de pessoas com instrução formal).

O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz explica esse antagonismo criado entre os dois tipos de obras. Segundo ele, as obras de arte funcionariam como ícones de contemplação. “Quadros e esculturas são, para nós, entes intelectuais e sensíveis (…)”, explica. Já o objeto artesanal proporcionaria prazer ao ser visto e tocado, transgredindo a adoração intocável típica da arte.

Esse lugar intangível do objeto artístico, porém, perde o sentido em um mundo em que a arte contemporânea se torna cada vez mais relacional e interativa. O pesquisador Mariano Pallaviccini explica que as práticas artísticas contemporâneas refletem a transformação da cultura e das formas de pensar o mundo de hoje e propõem modelos e experiências expositivas que estimulam a crítica e a participação do público.

“Cada vez mais a prática artística centra-se na esfera das relações inter-humanas: sendo desenvolvida em função das noções interativas, de convivência e de relacionamentos”, afirma Mariano.

Arte dos Mestres, os intérpretes de um Brasil plural

Neste contexto, a produção artesanal poderia ser mais contemporânea? Vale ressaltar que quando qualificamos algo como contemporâneo aqui não pretendemos falar de tema ou linguagem, mas de conexão com os mais atuais debates políticos e culturais. Neste sentido, a Feira-Exposição Arte dos Mestres, realizada entre os últimos meses de agosto e setembro pela organização Artesol, na capital paulista, nos traz muitos elementos para a reflexão sobre a produção artística que é, ao mesmo tempo, ancestral e contemporânea.

Menos atrelado à definição das categorias de arte e mais focado em celebrar o potencial e a pluralidade criativa brasileira, o evento reuniu obras de 21 coletivos e artistas (ditos populares) de todo o país. A mostra aconteceu simultaneamente à SP Arte, um dos principais circuitos de arte do Brasil.

Ao todo, foram apresentadas 250 obras em 775 metros m2 de área expositiva, incluindo peças inéditas que traduzem perspectivas de mundo, representam o cotidiano, mediam conexões com o divino ou seres míticos, ecoam mensagens do inconsciente, memórias e sonhos dos autores. O evento atraiu 8 mil visitantes entre colecionadores, gestores públicos, lojistas, pesquisadores e interessados em cultura brasileira durante 5 dias de feira.

Logo na entrada da exposição, o público era recepcionado por um trono feito de galhos de madeira da caatinga, adornado com esculturas de carrancas, bichos fantásticos e flores. A instalação convidava os visitantes a se sentarem no trono e se sentirem, por alguns instantes, como uma majestade de um Brasil tropical e sertanejo, rico em cultura, biodiversidade, imaginação e hospitalidade.

A obra assinada pelo artista alagoano Jasson não era uma exceção. De forma geral, as peças que preenchiam as salas subsequentes podiam ser tocadas e tocavam o público pela dimensão estética, pelas histórias de vida e perspectivas de mundo entrelaçadas às fibras, argila, galhos e tecidos.

Para além dos trabalhos, muitos outros elementos da exposição eram radicalmente interativos e relacionais. A coreografia dos gestos de escultores – que demonstravam ao vivo seu processo de entalhe, o interesse e a emoção dos artistas ao dialogar com o público, a troca de referências, inspirações e desafios entre os mestres de tantos territórios diferentes – tudo ali era sobre a arte do encontro: dos artistas entre si, deles com os visitantes, com antropólogos, galeristas e jornalistas.

Mais do que um diálogo com estes mestres, a mostra propunha um diálogo com um Brasil ainda feito de palafitas e pau a pique, aldeias e sertões, carnavais e procissões, exuberância e fome, florestas e canaviais, padres Cíceros e exus. Um Brasil, representado em obras que mais parecem crônicas da vida real – assinadas por autores que se descobriram artistas depois de trabalharem com os mais diversos ofícios e ocupações. São ex-cortadores de cana, carpinteiros, serventes de pedreiro, agricultores, vigias, cenógrafos e oleiros. Alguns vendiam sua produção depois de longas viagens no lombo de um jumento até chegar nas grandes feiras do Nordeste. Outros fugiram da violência ou da fome em casa, ainda crianças ou adolescentes. Outros ainda conseguiram se alfabetizar apenas na idade adulta.

Superando estigmas e estatísticas hostis, eles criam, hoje, narrativas potentes, lúdicas e provocativas sobre sua própria história e sobre a história do país. Um exemplo é o da artista Sil da Capela, que transmutou para a sua série de jaqueiras moldadas no barro as memórias de uma infância que não viveu. Na época, já trabalhando no corte de cana, ela sonhava com a vida de crianças que via brincando, ou lendo debaixo da jaqueira.

Não por menos, um dos maiores antropólogos do Brasil, Darcy Ribeiro, já nos anos 90, defendia a importância de se colocar luz sobre essa produção criativa brasileira para se explicar o Brasil. “Como estabelecer a forma e o papel da nossa cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu, frente à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para compreender essa nossa nova versão do mundo e de nós mesmos?”, questionou o escritor no célebre livro “O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil.

” Por isso, uma das curadoras da mostra, Josiane Masson, defende que Arte dos Mestres é, na verdade, um movimento. Esse movimento se soma a muitas outras iniciativas em curso no Brasil e prova a existência de um circuito artístico e cultural nas regiões periféricas desse país denso, transcendendo o “gueto” do exótico e mostrando a arte como uma ferramenta de transformação e um veículo de comunicação e integração.

No livro “A virada decolonial na arte brasileira”, a pesquisadora e professora Alessandra Simões garante haver uma revolução em curso no campo das artes e destaca a importância de iniciativas que têm dado visibilidade a grupos sociais historicamente minorizados que estão se tornando vanguarda, como povos originários, pessoas negras e a população de comunidades tradicionais e periféricas que tencionam mudanças estruturais em nossa sociedade.

Uma prova disso é que em São Paulo está em cartaz no Sesc Belenzinho a Exposição dos Brasis – Arte e Pensamento Negro apenas com obras de artistas negros; no MASP será aberta, em outubro, a mostra Histórias indígenas; e a 34ª ediçãoda Bienal de São Paulo é histórica com a presença de 5 artistas indígenas brasileiros. Segundo Alessandra, essa revolução faz parte de um movimento chamado de “decolonial” e indica uma grande mudança de paradigma na arte produzida no Brasil e no mundo, acompanhada de uma urgente necessidade de reparação histórica diante do apagamento da perspectiva e memórias desses grupos, que estiveram sempre à margem do mercado artístico. Por mais que o termo decolonial – de forma geral – se refira a obras de arte com viés crítico e político, o próprio processo de dar voz a populações marginalizadas pela história da arte pode ser considerado um gesto decolonial, que mostra que não existe uma única história da arte, mas muitas histórias e os artistas populares do Brasil fazem parte delas.

Camila Fróis é jornalista, dedicada a a cobrir pautas da área de cultura popular, meio ambiente e direitos humanos.