Zé Bezerra e o pré-histórico Vale do Catimbau
O escultor José Bezerra vive no semiárido pernambucano, onde os horizontes grandes e o cenário insólito evocam tempos remotos. Sua casa-ateliê está rodeada de cavernas, cajueiros a perder de vista e inscrições rupestres que registram a ocupação humana ali há cerca de seis mil anos, em uma rota de turismo outdoor pouco explorada, mas muito instigante.
Mariana Campanatti
Fotos: Theo Grahl e Mariana Campanatti
Ao longo de sua existência, os seres humanos de diversas civilizações deixaram rastros de sua passagem no planeta, como pinturas rupestres, artefatos e diferentes expressões de sua imaginação. Eles decidiram transcender o limite que o tempo impõe para o nosso corpo perecível, fazendo questão de ecoar sua existência através dos séculos por meio de pequenos gestos de criatividade.
Alguns desses indivíduos cantam e contam histórias. Como amantes dessas narrativas tão particulares, partimos para um lugar que é um elo entre os tempos de tramas vividas há muitas geraçõese enredos instigantes que se desenrolam no tempo presente.
Onde tudo começou
O convite para conhecer o Vale do Catimbau (PE) veio de um amigo querido, o fotógrafo Theo Grahl, que um dia compartilhou um sonho: fotografar grandes mestres artesãos brasileiros, talvez ainda pouco conhecidos, mas de genialidade inquestionável. São personalidades cheias de pulsão, que intervém no mundo de forma criativa e potente, criando, junto às suas famílias e inspirados por seus contextos culturais, um legado para além do seu tempo.
Não sei ao certo se foi um convite, mas a proposta do Theo mexeu comigo. Me encantou tanto que eu não podia me imaginar fora dessa jornada. Seis meses depois deste almoço, demos início à nossa expedição. Formatamos um projeto ousado e partimos para executar o piloto. Nós dois temos algo em comum: uma paixão exacerbada pelos rincões do país. Logo, já sabíamos por onde gostaríamos de começar nossa primeira viagem – a primeira das 7: no impressionante sertão brasileiro. Algo muito especial nos fazia um chamado, um grande personagem que vive cercado do semiárido pernambucano.
Para a nossa sorte, o caminho que nos levaria até este mestre é por si só uma aventura e tanto: cenário de tramas instrigantes da história brasileira, pano de fundo de importantes filmes do cinema nacional, palco de batalhas do cangaço e, atualmente, tema de novelas do horário nobre. Voltamos com a alma preenchida e os os olhos deslumbrados, conhecendo um pouco mais sobre o Brasil e ainda mais apaixonados pelo nosso povo e nossa terra – um presente que nosso trabalho nos legou.
Nossa trajetória começou em Recife, cidade que já seduz os visitantes por ostentar um dos mais carismáticos sotaques brasileiros, compartilhado em histórias recheadas “proooonto” e “visse??”. Pegamos ali nosso carro e seguimos sentido a Buíque, a cidade mais próxima do nosso destino: o Vale do Catimbau. Foram 5 horas de viagem: 290 km desde Recife até a entrada do sertão pernambucano
O Vale do Catimbau
O Parque Nacional do Catimbau, também conhecido como Vale do Catimbau, foi criado em 2002, sendo considerado o segundo maior parque arqueológico do Brasil. É composto por imensos paredões de rocha arenítica que apresentam formas únicas e escondem um intenso misticismo. Todo o Vale concentra diversos sítios arqueológicos, grutas, cemitérios pré-históricos e pinturas rupestres com mais de seis mil anos. Com certeza, um roteiro fora do comum. A porta de entrada é o município de Buíque, a cidade em que Graciliano Ramos – um dos principais escritores modernistas brasileiros – passou o início da sua vida.Sobre esta parte fundamental da sua história, escreveu o livro “Infância”.
“…Buíque tinha a aparência de um corpo aleijado: o largo da Feira formava o tronco; a rua da Pedra e a rua da Palha serviam de pernas, uma quase estirada, a outra curva, dando um passo, galgando um monte; a rua da Cruz, onde ficava o cemitério velho, constituía o braço único, levantado; e a cabeça era a igreja, de torre fina, povoada de corujas…”
No dia seguinte, logo pela manhã, agendamos um encontro com Luís Cavalcante, que nos guiaria pelo Catimbau e nos levaria a conhecer o mestre artesão que era o motivo de nossa viagem até ali. Nascido e criado no Catimbau, Luís nos contou que viveu uma infância muito pobre e que seus dias consistiam em andar pelas trilhas, ainda não manejadas do Vale. Por isso, ele conhecia tudo por ali. Naquela época, para aliviar um pouco sua fome, catava o coquinho que nascia da palmeira do licuri, um coqueiro típico da Caatinga. Durante suas aventuras, conheceu um grupo de arqueólogos que começaram a encontrar no Vale pinturas rupestres. Seria o início do Parque. Os pesquisadores contrataram Luís para ajudá-los a chegarem nas diferentes grutas e formações rochosas da área, já que ele era grande conhecedor da geografia local.
Contar com o Luís como guia foi fundamental na nossa jornada. Nossa intenção primeira era chegar até a casa de Zé Bezerra, nosso primeiro mestre artesão a ser fotografado. No caminho, porém, tivemos verdadeiras aulas sobre o semiárido, a caatinga, as rochas de arenito, a arqueologia, os melhores points pra escalada por ali e até lições cotidianas sobre como aproveitar o mandacaru para alimentar o gado, quais plantas são importantes para as abelhas e para os morcegos, o que poderíamos comer e de quais plantas deveríamos passar longe. Não aprendemos, porém, apenas sobre os aspectos biológicos e geográficos daquele recanto, mas também sobre episódios históricos intrigantes como a passagem de Lampião e Maria Bonita por aquelas terras, as histórias sobre as batalhas do cangaço que aconteceram ali e os bastidores de produções cinematográficas como Árido Movie, dirigida por Lírio Ferreira e protagonizada pelo talentoso Selton Mello.
A paisagem do Vale é dura, bonita e um tanto sinistra. Ao mesmo tempo que gera um encantamento, é recheada de mistério e rudeza. O caminho até a casa do Zé Bezerra é seco e bruto. São quarenta minutos de uma estrada de chão, que margeia casas de taipa, cercas com arames farpados, mandacarus e outros cactos nativos da caatinga. De repente, percebemos que havíamos chegado: a paisagem ainda é bruta, mas agora é como se estivéssemos entrando em um cenário surreal, criativo e cheio de personalidade.
A casa e os causos do Zé Bezerra
O escultor José Bezerra é um deles. Sua propriedade é composta por uma casa de taipa, onde mora com sua esposa Quitéria e cria seus seis filhos. Logo ao lado está seu ateliê, onde trabalha esculpindo suas obras com as madeiras que encontra pelo agreste e uma grande área aberta que funciona como um museu a céu aberto. Ali, expõe suas peças, seus personagens, suas histórias: uma obra se relacionando com a outra como se uma grande festa estivesse acontecendo. São carrancas e diversos animais como ninhos de cobra, cavalos, bodes e águias. A princípio, pode-se parecer que o acabamento não foi bem feito. Este é o engano, como explica Zé ao mostrar a sua obra.
”Alguém veio aqui e falou que eu deveria lixar aqui, arrumar isso, arrumar aquilo. Ele não percebeu que a águia veio pronta da natureza.Aqui estão as penas, aqui está o movimento. Essa é a beleza. Essa é a arte do Zé Bezerra!”
Nós sabíamos algumas histórias do Zé. Sabíamos que ele era uma grande figura e já havíamos ouvido falar de sua forma de se expressar livre de lixas e resinas, desapegada de um padrão de certezas. Estávamos curiosos para conhecê-lo de perto. Ao chegar na sua propriedade, fomos recebidos com seu sorrisão e, logo, com suas histórias. “Você pode escolher se é verdade ou é mentira”. Eu escolhi acreditar em tudo.
Zé logo pega seus instrumentos e providencia aos visitantes um show com muitos improvisos que misturam a sua história de vida, com outras prosas do sertão e, também, recados e piadas sobre os forasteiros, no caso, nós. Tivemos o privilégio de acompanhar não apenas um espetáculo marcado pela sonoridade de seu berimbau autoral, como também por performances com o bumbo e o triângulo: som de primeira qualidade. Logo se percebe que estamos diante de um grande artista.
Não podíamos, porém, perder o foco. Nossa intenção sempre foi fazer um belo registro deste grande homem que consideramos um patrimônio nacional. Depois de algumas tentativas nossas de retratos, perguntamos se ele teria vontade de nos dirigir com ideias para retratos. Este processo de criação foi encantador: ele começou a contar todas as histórias de suas obras, como elas se relacionavam, o que havia acontecido com tal personagem, por que aquela carranca estava com aquela cara mal humorada – pois havia sido barrada na festa, ou o motivo da cara serena do cavalo, que estava seguindo seu rumo. Definitivamente um dia de muita inspiração.
Zé é um artista pois sabe brincar. E tem a segurança, como uma criança, que sabe o que está fazendo: não questiona, está seguro. Não mede riscos, não mina a própria ideia antes de colocá-la em prática. É na brincadeira e no olhar investigativo e curioso, que Zé mantém o olhar de artista, puro e livre, onde vislumbra e cria suas esculturas. Na leveza da arte, carrega sua vida dura.
O Vale do Catimbau é um território em que o homem e a natureza se misturam. Seu povo tem um olhar imaginativo capaz dever bichos na paisagem ecombinar os reinos, seja transformando as pedras em animais, os animais em esculturas, ou o homem em paisagem. Nas obras do Zé, a natureza que estava morta ganha vida, nas paisagens do Vale, a montanha vira Morro do Cachorro e Serra do Elefante. Nela, vemos os cascos das tartarugas e a cabeça do jacaré.
A imaginação é inerente ao sertanejo do Catimbau. E o trabalho deste grande mestre que pudemos fotografar já deixou um grande legado para a região. Hoje, já são diversos artesãos que seguem seus passos, com olhares diferentes, com outras vivências e referências, mas, ainda assim, inspirados por seu pioneirismo e imaginação pulsante.
Brincar neste Zé e sua imaginação no Catimbau me lembrou dos poemas de Manoel de Barros.
“Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre pedras:
– liberdade caça jeito.
Procuro com meus rios os passarinhos
Eu falo desemendado
Manoel de Barros
Rede Artesol
Mariana Campanatti
Mariana Campanatti é comunicadora com ampla atuação na área de comunicação e de impacto social. Atua na gestão de projetos, curadoria e consultoria na área de comunicação, empreendedorismo social, sustentabilidade e negócios de impacto. Acredita que nasceu no país mais lindo do mundo, terra que ama e gosta de conhecer cada vez mais todos seus cantinhos com suas artes e personalidades.
Theo Grahl
Theo Grahl é fotógrafo, videomaker e idealizador da Mombak Coletivo. Ama ouvir histórias e, a partir delas, contar essas histórias através de imagens e sons! Apaixonado pela cultura tradicional!