As artes populares no mundo contemporâneo

Qual lugar ocupam as chamadas "artes populares" no mundo contemporâneo? Como elas interagem com o sistema da arte e sua atual dinâmica econômica? A partir de um ponto de vista sociológico, neste texto, o sociólogo Artur Lins apresenta uma breve narrativa sobre o circuito das artes plásticas populares no Brasil.
Artur André Lins

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Cabeças esculpidas em barro pela mestra Dona Irinéia. Exposição Alagoas Handemade Collection. Foto: Divulgação./CASACOR 

Empregado no plural, o termo “artes populares” é utilizado para indicar um conjunto de práticas e objetos que são classificados ora como “artesanato tradicional”, ora como “Arte Popular”. De um lado, o artesanato reivindica os valores da tradição comunitária e da serialidade dos objetos, por outro lado, a Arte Popular reivindica os valores da singularidade autoral e da unicidade das obras. Desse modo, as “artes populares” se situam em uma espécie de entrelugar. Elas não cabem na dicotomia convencional que promove as separações enfáticas entre “artista” e “artesão”, entre “inovação” e “tradição” e entre “individualidade” e “coletividade”. Por isso, as “artes populares” habitam uma zona intermediária entre a arte e o artesanato.  

A diferença entre arte e artesanato constitui uma fronteira simbólica historicamente estabelecida. Desde o Renascimento no século XV, passando pela construção do sistema acadêmico de formação no século XVI em diante, até o Romantismo no século XIX, as belas-artes, na civilização ocidental, foram se constituindo enquanto uma esfera relativamente autônoma e simbolicamente distinta da indústria e do artesanato. Entretanto, no decorrer do século XX, a partir do Modernismo e, posteriormente, com o Pós-modernismo, ocorreu um questionamento das convenções artísticas dominantes. Nesse movimento, a arte primitiva, a arte dos insanos, a arte dos ingênuos e autodidatas, assim como a dita arte popular e o artesanato tradicional, passaram a ser assimilados ao sistema artístico. Essa assimilação, contudo, não se deu de maneira pacífica. Persistem as hierarquias, os conflitos, as desigualdades simbólicas e materiais. Tais hierarquias, inclusive, deixam rastros nas palavras e nos conceitos que utilizamos.

Sabemos que o termo “artes populares” é conceitualmente problemático, carregando consigo imprecisões redutoras. Originalmente cunhado enquanto uma categoria sociológica, a arte dita “popular” refere-se à classe social de origem de um conjunto de criadores. Além da atribuição de uma origem social, esse termo também designa uma situação de marginalidade no âmbito do sistema artístico, contemplando criadores que estão posicionados às margens do mainstream. Prefiro pensar que o qualificativo “popular” não suscita uma questão de espécie, mas de grau. Os artistas populares se aproximam, em maior ou menor grau, de uma série de atributos como: “temática popular”, “autodidatismo”, “criatividade idiossincrática”, “estilo primitivista ou naif”, “origem rural ou periférica”, “tradição comunitária” e “cultura artesanal”.

 

Escultura do artista cearense Din Alves na Exposiçao Arte dos Mestres, realizada pela Artesol em São Paulo (SP). Foto: Carla Labartte

Contudo, a “Arte Popular” não é apenas uma categoria sociológica.Também se trata de uma categoria nativa do campo artístico. Isso significa que ela institui um repertório simbólico, estabelecendo uma espécie de cânone alternativo, com artistas, tradições, técnicas e objetos que são valorizados como “autênticos”. Como um termo nativo do sistema artístico, a chamada “Arte Popular” evoca, nas mentes daqueles que proferem e escutam essa categoria, uma imagem de criador e um conjunto de ícones celebrados, como nomes próprios ou tradições coletivas. Embora seja uma categoria imprecisa e redutora, a “arte popular brasileira” ainda permanece definidora de um universo socialmente constituído, cumprindo, assim, uma função comunicativa. E comunicar, nesse caso, é uma forma de dar visibilidade.

A formação de um circuito artístico

Na modernidade capitalista, a partir da industrialização, o artesanato foi transformado em elemento antiquado e supérfluo do ponto de vista das estruturas econômicas e produtivas. Os objetos artesanais que compunham o cotidiano foram largamente substituídos por mercadorias industriais.

Antes vinculado à indústria doméstica rural-camponesa e à pequena indústria urbana, o artesanato, ameaçado de desaparecimento, encontrou uma reacomodação histórica no século XX. Nesse momento, ocorreu um reposicionamento do saber-fazer artesanal nas “sociedades modernas”, deslocando o objeto artesanal na direção do universo da criação artística e do mercado de artigos colecionáveis. As ditas “artes populares” são tributárias desse processo histórico mais amplo que provoca a transformação social dos ofícios manuais.
 

ArtRio Galeria Karandash / José do Chalé. Foto: Artur Lins

Na literatura especializada é descrito que o interesse intelectual pela “cultura popular” e pelas expressões estéticas “desviantes” se estabeleceu como herança do Romantismo e do Modernismo. Na sociedade brasileira, especialmente a partir de meados do século XX, um conjunto de intelectuais, pesquisadores, artistas, críticos, colecionadores e instituições passou a assimilar mais intensamente as chamadas “artes populares” no contexto do sistema artístico. Em 1947, tem-se como marco a exposição Cerâmica Popular Pernambucana, sediada na Biblioteca Castro Alves, com a curadoria de Augusto Rodrigues, que foi responsável por apresentar Vitalino Pereira dos Santos ao público carioca. Como desdobramento dessa exposição, em 1949, o MASP ofereceu ao público paulista a mostra Arte popular pernambucana. Como consequência de um experimento terapêutico da médica Nise da Silveira com internos de um hospital psiquiátrico, também no ano de 1949, ocorria a exposição 9 artistas do Engenho de Dentro, no Museu de Arte Moderna - MAM, na cidade de São Paulo, com a curadoria de Léon Degand e Mário Pedrosa. Pintores populares como Heitor dos Prazeres e José Antônio da Silva foram incluídos na I Bienal Internacional de São Paulo, em 1951.

Desde então, com maior força a partir da década de 1970, paralelamente ao fenômeno global de abertura estética impulsionado pelo Pós-modernismo, múltiplas exposições tematizaram as chamadas “artes populares” no âmbito do sistema artístico. Acompanhando esse movimento, começaram a surgir instituições museológicas especializadas, bem como lojas e galerias exclusivamente dedicadas ao mencionado segmento. Com isso, aumentou-se também o número de colecionadores interessados. Simultaneamente, despertou-se maior atenção de pesquisadores e críticos de arte, estimulando o debate intelectual com novidades editoriais. Formava-se, então, uma espécie de circuito no interior do campo das artes brasileiras: o circuito das artes populares. A emergência desse circuito repercutiu diretamente na materialidade dos objetos dos artistas populares, os quais passaram a considerar as expectativas estéticas externas de intermediários especializados e de uma clientela metropolitana.

Artista alagoano Jasson Silva com cartaz de Exposição "O sol nasce para todos" sobre o seu trabalho. ao fundo. Foto: Theo Grahl

Mercado e legitimação das artes populares

No amplo espectro das “artes populares” há criações que se aproximam da imagem do artesanato e criações que se aproximam da imagem da arte. A recepção intelectual dessas criações também se alterna entre um “protocolo antropológico”, que acentua as características culturais, comunitárias e tradicionais, e um “protocolo artístico”, que enfatiza as características estéticas, intrínsecas e individuais. É por essa razão que alguns artistas populares possuem maior penetração no sistema artístico restrito, enquanto outros circulam apenas no segmento econômico artesanal mais ampliado. Com frequência, há aqueles que transitam nos dois sentidos. Portanto, a assimilação das artes populares ao mercado e ao sistema artístico encontra variações importantes. Há uma farta heterogeneidade que esse circuito abrange.

 No mundo contemporâneo, as artes plásticas populares interagem com múltiplos segmentos da vida social. É possível pensar em, pelo menos, quatro espaços de assimilação. Primeiramente, o espaço do turismo, que vincula as artes populares à experiência da viagem. Não é incomum, hoje, observar como as artes populares são mobilizadas nas estratégias de desenvolvimento local enquanto ativos simbólicos imateriais de um território, exercendo, assim, um efeito de atração. O espaço de assimilação transnacional também é ilustrativo. As artes populares são cada vez mais requisitadas por estratégias comerciais de posicionamento do produto brasileiro no exterior. A globalização, ao evidenciar as diferenças, reforçou o apelo dos produtos “étnicos” e “locais” nos mercados estrangeiros.

Exposição Fernando da Ilha do Ferro da Galeria Estação. Foto: Giselli Gumiero

É possível citar o espaço de assimilação do design e da decoração de interiores. Nesse caso, as artes populares são apresentadas como objetos decorativos utilizados na ambientação de casas de campo ou urbanas, apartamentos, hotéis e estabelecimentos comerciais. Atuam, nesse espaço, agentes intermediários como arquitetos, designers, comerciantes e jornalistas, que promovem a qualificação dos objetos perante um determinado público que seria potencialmente sensível a uma decoração “contemporânea” pautada em valores simbólicos como a diversidade cultural e a sustentabilidade socioambiental.

Em paralelo, há o espaço de assimilação dos museus e das exposições onde as artes populares são apresentadas como objetos artísticos. Nesse espaço, atuam agentes intermediários como curadores, críticos, galeristas e instituições museológicas. Os museus e as exposições possibilitam a legitimação das artes populares, negociando o valor simbólico de autenticidade e fomentando uma apreciação estética dos objetos. Assim, podemos dizer que esses quatro espaços – turismo, transnacional, design-decoração e museu-exposição – promovem a assimilação e a legitimação das artes populares no mercado e no sistema artístico contemporâneos.

A dinâmica relacional dos variados elos que compõem o circuito das artes populares – artistas, intermediários, instituições e consumidores – é responsável pela construção social de um gênero artístico de apreciação, marcado por um segmento econômico específico e por um cânone alternativo que disputa simbolicamente o reconhecimento oficial no campo das artes brasileiras. Essa dinâmica relacional, entretanto, não está isenta de conflitos. Assim como no alto segmento artístico observamos assimetrias entre os agentes, as relações desiguais de poder permeiam o circuito das artes populares. E nessas relações, como sabemos, é o artista popular que costuma ser o elo mais frágil. Por isso a importância de protegê-lo e valorizá-lo, principalmente através do reconhecimento de sua autoria e da remuneração justa do seu trabalho.  

 

 

Livro

O tema do texto também é apresentado com maior aprofundamento, no  livro recém-publicado de Artur Lins pela Editora Fino Traço, intitulado “O Circuito das Artes Populares no Brasil: o caso do povoado Ilha do Ferro"

Sobre o autor

Artur André Lins

Artur André Lins, sociólogo pela UnB, doutorando em Sociologia. Atualmente, dedica-se a um projeto de pesquisa sobre o mundo da arte popular e do artesanato brasileiro, em que investiga a conexão entre a cultura popular, o território onde ela está inserida e o mercado contemporâneo.
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