Irineia e o quilombo

Por Rquel Lara Rezende


Foto: Itawi Albuquerque/Sedetur

 

Uma mulher cheia de marcas, histórias, inspiração e talento. No entanto, quem a olha desatentamente pode não se dar conta do tanto de vida que carrega nos olhos. Impossível mesmo imaginar que aquela figura tão absorta com as mãos no barro, junto ao seu esposo, sentada na sala de sua casa, cercada por netos e filhos, já tenha vivido tantas experiências fortes.

A história de Irinéia surpreende qualquer ouvinte, especialmente por sua narrativa, cujo tom parece ser de alguém que conta a trama de um conhecido. Em alguns momentos, entretanto, sua fala, seus gestos e seu olhar se desvelam bem presentes e conscientes da dor talvez ainda latente, há muito já entregue à textura mágica do barro que a salva de suas próprias lembranças.

Irinéia nasceu e cresceu em Muquém, a primeira comunidade negra a conquistar posse de suas terras, sendo remanescentes do Quilombo de Palmares, um dos mais expressivos do período colonial que se tem registro. Reconhecida oficialmente em 2005, pela Fundação Palmares, Muquém, hoje distrito de União dos Palmares (AL), começa a sua história com cinco irmãs que teriam descido da Serra da Barriga, onde se encontrava o Quilombo dos Palmares, após a sua destruição, em 1695, para se refugiarem. Escolheram, então, a região próxima ao rio Mundaú e aos poucos mais pessoas chegaram, formando o povoado de Muquém.


Foto: Itawi Albuquerque

Assim, cercada de histórias de luta, a comunidade segue o curso da resistência, mantendo-se em pé, mesmo com as sérias dificuldades que enfrentam diariamente – é comum ficarem até 15 dias sem acesso à água. Com isso, o Rio Mundaú se torna o espaço público por excelência dos moradores que em suas águas lavam as louças, roupas e se banham.

O rio possui um lugar central na fundação, no cotidiano da comunidade e também em suas mais dramáticas lembranças, marcadas por violentas cheias que levaram casas, pertences e vidas. Hoje, quem chega a Muquém, avista várias casas, uma ao lado da outra, cada uma de uma cor. Elas foram construídas pelo Programa do Governo Federal "Minha Casa, Minha Vida", após a enchente de junho de 2010 que deixou cerca de 120 famílias desabrigadas e 25 mortos.



A jaqueira, árvore da vida Foto: Itawi Albuquerque

Alguns moradores conseguiram sair em tempo de casa e correr para a parte mais alta do povoado, onde a água não chega. A maioria, no entanto, precisou se refugiar como pôde. Duas jaqueiras, hoje referenciadas pelos moradores como árvores da vida, salvaram cerca de 52 moradores que subiram nas árvores, entre eles, algumas filhas de dona Irinéia. A ceramista, que não pôde correr quando a água tomou conta de sua casa, subiu no monte de lenha que havia no quintal e ali permaneceu com mais quatro pessoas.

Após a enchente, a mestre transpôs para o barro as cenas das pessoas na jaqueira e no monte de lenha. Hoje, estas estão entre as peças mais conhecidas de dona Irinéia. O título de Mestra recebido por dona Irinéia também trouxe mais visibilidade para Muquém que passou a receber visitas de pessoas interessadas no trabalho da cerâmica, também realizado por outras pessoas da comunidade.

A enchente da jaqueira, entretanto, não foi a primeira tragédia vivida por ela. Na década de 1960, o rio também havia subido inesperadamente e marcou profundamente a vida da mestra. Nessa época, o primeiro esposo de dona Irinéia trabalhou recolhendo os corpos daqueles que haviam morrido na enchente. Traumatizado com a experiência, acabou tornando-se alcoólatra e andarilho. “Eu pensando assim: no tempo em que eu me casei, ele tinha saúde, agora por mode da doença que eu vou abandonar, né? E eu tentei de ficar com ele, mas sufri que só. De Maceió pra Juazeiro, acho que eu tenho umas quinze viaje pra mais. De pé!”
Após tantos anos (quantos?) de sofrimento vagando ao lado do companheiro alcóolatra, algo em dona Irinéia fez crescer a coragem necessária para romper com o marido.

"A gente tinha chegado naquele dia mesmo em Juazeiro, aí ele caiu no meio do comércio. Aí que me deu aquela atitude, é agora que eu vou deixá-lo. Aí deixei ele caído no meio da rua e peguei os três menino e fui procurar um canto pra dormir que já tava se aproximando a noite. Aí quando já tinha arrumado um pedacinho de dinheiro que já dava pra seguir viagem, aí eu vim-me embora. Levei mais de mês pra chegar, porque o dinheiro não dava pra vir direto, com toda a família”, lembra a artesã.

A volta a Muquém


Foto: Itawi Albuquerque

Chegando em Muquém, Irinéia foi viver com uma irmã e um ano mais tarde se casou com seu Antônio, com quem teve mais sete filhos. Ao seu lado, entrou em contato novamente com o barro. Relembrando os tempos de criança em que ajudava a mãe no acabamento das panelas e potes que fazia, a artesã mergulhou no ofício.

Com o tempo foi recebendo pedidos de ex-votos para moldar partes do corpo que eram levadas pelos fiéis como oferenda ao santo solicitado. Essas peças acenderam em Irinéia seu potencial criador e ela começou a moldar o barro de forma bem própria, imprimindo nele sua história, criando uma estética única. “Eu não tinha noção de fazer nada com o barro usando a minha mente, aí foi que Deus me mostrou a minha arte e graças a ele deu certo. Quando estou longe do barro não estou feliz. É ele que faz a minha imaginação acontecer, ele é a minha vida”.

Em 2005, Irinéia recebeu o título de Patrimônio Vivo de Alagoas. Hoje, suas peças são cada vez mais conhecidas no Brasil, podendo ser encontradas em galerias de arte e cultura em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, entre outros centros urbanos. Em 2004, também foi indicada ao Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina e o Caribe e em 2015 algumas de suas peças foram levadas para a Expo Milão, na Itália, uma feira que reúne obras de arte de 140 países. No começo de abril de 2018, a Mestra Artesã recebeu mais uma homenagem, dessa vez da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), que inaugurou o Espaço de Memória Artesã Irinéia Rosa, no campus de União dos Palmares, dedicado à arte popular.

Foto: Raquel Lara Rezende

Com 72 anos, Irinéia segue com as mãos no barro, junto ao seu esposo seu Antônio, que recolhe  a argila e a amassa para a artesã e trabalha com ela no acabamento das peças. Depois de moldados, os objetos são queimados em um forno à lenha. Além das famosas cabeças - que são o principal trabalho autoral da artesã, e da jaqueira, Irinéia molda santos, como São Francisco, animais, mulheres amamentando, casal se beijando, entre outras figuras que povoam seu imaginário.

Muitas pessoas se espantam com similaridade entre as feições das cabeças de dona Irinéia com os seus próprios traços, mas isso não é algo claro para ela. No fazer artesanal Irinéia acessou a força que necessitava para construir a sua própria vida e nesse encontro que liga a sua história à história de seus antepassados, o seu poder criativo floresceu, a permitindo se reinventar a si mesma e as passagens de sua vida, em cada peça de barro que molda.

O título de Mestra, além de reconhecer a sua importância enquanto detentora de um saber tradicional que é partilhado com as gerações mais novas, é um reconhecimento da beleza e importância do seu encontro com a tradição no presente que desenha novas possibilidades de uso da técnica enquanto modo de expressão e criação.

Hoje, a casa de dona Irinéia está sempre cheia de netos e filhos. Uns cuidam dos outros de tal forma que é difícil saber quem é filho de quem. Dona Irinéia gosta mesmo é que comam todos juntos e que tenha fartura na mesa. Seu sonho é ver seus filhos e filhas darem continuidade ao trabalho construído e reconhecido depois de tantas provas. Até o momento, Mônica, a filha mais nova, é a única a se aventurar na busca por sua própria relação com a cerâmica. Ela também participa de um projeto na escola Municipal de Muquém, ensinando as crianças a trabalhar com o barro, ampliando a possibilidade de se conectarem a ancestralidade que também os compõe.

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